Artista não-binárie da Alemanha é destaque no cinema brasileiro


O filme “Carro Rei”, dirigido por Renata Pinheiro e vencedor do Festival de Gramado em 2021, chegou aos cinemas brasileiros nessa quinta-feira (30) e tem como protagonista Jules* Elting, artista trans não-binárie, nascide na Alemanha.

Jules* foi escolhidu uma das cinco pessoas mais influentes do universo das artes, mídia e cultura do mundo, segundo a plataforma alemã “Prout At Work”, que destaca a causa LGBTQIA+.

Apesar de estar nas telas brasileiras, “Carro Rei” não foi o primeiro papel de Jules* no país. Antes, elu fez participações em filmes como “A Via Láctea” (2007) e “Encarnação do Demônio” (2008), já considerado um clássico moderno de Zé do Caixão. Também esteve em competição no Festival do Rio com o longa “Alguma Coisa Assim” (2017), do cineasta Esmir Filho.

Alemanha X Brasil

Jules* nasceu em Hamburgo e foi criade em Frankfurt. Sua chegada ao Brasil aconteceu em 2005, onde morou até 2015. Sem saber o idioma, integrou a equipe da companhia Teatro Oficina, e ainda assim, chamou atenção do diretor e do elenco em uma temporada da trupe em Berlim.

Até então artista de teatro, foi vivendo no Brasil que elu começou a trabalhar com cinema. “Na Alemanha, é tudo muito segmentado: quem dança, dança; quem atua, somente atua; e por aí vai. Aqui você é artista, pensa como artista, pensa no todo”, disse Jules*.

O idioma foi aprendido nas leituras e encenações de clássicos brasileiros como “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, além do período em que conviveu com os moradores do Bixiga (SP), e nas comunidades paulistanas, onde fez grandes amigos e se habituou às gírias e modos linguísticos locais.

A vida no Brasil durou dez anos. “Eu estava com apetite de me arriscar de novo. Sou uma pessoa que busca o risco, principalmente como artista”, define, ao justificar o retorno para a Alemanha.

Três nascimentos

Jules* considera que teve três nascimentos em sua vida até. O primeiro foi quando veio ao mundo, o segundo foi sua imersão na arte e o terceiro foi atrelar sua identidade.

Elu conta que sempre quis atuar. “É algo que realmente vem de dentro, que faz parte de mim”, comenta. A primeira peça profissional aconteceu aos 17 anos e ficou em cartaz por dois anos, com mais de 80 apresentações. Em 2004, conheceu o Teatro Oficina, que se apresentava em Berlim. Foi então que Zé Celso disse que precisava de uma pessoa que soubesse atuar e dançar.

“No Oficina, fui tirando as cascas, pouco a pouco. As cascas da educação do teatro alemão. Da autolimitação”, conta.

Foi morando no Brasil que elu atrelou sua identidade e teve seu terceiro nascimento. Durante a pandemia da Covid-19, Jules* conta que precisava se descobrir como artista.

 

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“No lockdown, sem personagens, sem palco, protagonizei minha própria vida e mergulhei em mim, em quem eu sou. Foi pela comunidade virtual que eu fui conhecer outras pessoas trans não-binárias, aprender termos que até então eram desconhecidos. Foi uma felicidade e também um choque dentro de mim. De repente, tudo fazia sentido”, comenta.

“E, pensando também no inconsciente, acho que precisava morar em Berlim para entender quem eu era além de artista”, continua.

Jules* ficou em Berlim neste período e voltou ao Brasil para as gravações de “Carro Rei”.

Além de contar com figuras como Matheus Nachtergaele entre outros, o longa traz Jules* no papel de protagonista interpretando Mercedes, uma artista feminina que carimba símbolos contra o poder masculino em praça pública na calada da noite.

Jules* conta que nesse período de volta esteve mergulhade para caracterizar a personagem.  “Quando tenho um novo papel gosto de fazer mergulhos profundos e criar todo o universo dessa pessoa, mesmo que no resultado final seja visto momentos específicos deste mundo construído.”

Identidade

Conhecer e assumir sua identidade, fez com que Jules* se dedicasse ao ativismo da causa LGBTQIA+.

No Brasil, cerca de 2% da população brasileira são pessoas transgênero ou não-binárias, segundo um estudo desenvolvido pela Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Ao todo, foram entrevistadas seis mil pessoas em 129 municípios de todas as regiões do país. Em números absolutos, essa população é de três milhões de indivíduos.

Desse total, pessoas identificadas como transgênero representaram 0,69% e os não binários, 1,19%.

Pessoas transgênero se identificam com um gênero incongruente ou diferente daquele que lhes foi atribuído no nascimento. Já o termo “não binário” diz respeito a indivíduos que sentem que sua identidade de gênero está fora das identidades masculina e feminina, ou entre elas.

No caso de Jules*, elu ficou muito tempo sem entender sua identidade. Se considerava feliz somente no trabalho, quando assumia um personagem.

“Fora do palco me sentia extraterrestre. Sempre senti como não fazer parte. Ser de fora. Só se sentir completamente em meu potencial como ser humano, e pessoa plena, no palco”, reflete.

Elu ainda ressalta que ainda como o sistema em que estava inseride e como a humanidade “apaga” essa existência. “Somos invisibilizades e por isso é tão difícil se reconhecer e ter esse momento de identificação consigo”, disse Jules*.

“São raros personagens não-bináries e trans em contextos que não sejam de violência, de morte ou distúrbio mental. Me entender como sou trouxe o receio do fim da carreira, de não ter espaço ou papel para uma pessoa como eu”, afirma.

Elu conta que teve a sorte de participar de um grande movimento na Alemanha assim que assumiu sua identidade.

O ActOut foi um marco na indústria cinematográfica e da dramaturgia, com 185 pessoas se declarando publicamente LGBTQIA+ jogando luz na falta de diversidade nos palcos, roteiros, sets de gravação.

*Com informações de Agência Brasil.

Este conteúdo foi originalmente publicado em Artista não-binárie da Alemanha é destaque no cinema brasileiro no site CNN Brasil.