I-Doser: entenda por que as “drogas digitais” não passam de placebo


Texto Bruno Vaiano Ilustração João Montanaro Design Carlos Eduardo Hara

Ficar bêbado é um fenômeno bioquímico impressionante. O etanol, absorvido pelo intestino, cai no sangue e põe em alerta o fígado – a estação de tratamento de esgoto do seu corpo, que processa o álcool até transformá-lo no inofensivo acetato. Uma taça de vinho bem-servida, porém, já sobrecarrega o órgão. A manguaça vai parar no cérebro – onde manifesta sua afinidade com um receptor chamado GABA.

Receptores são proteínas que ficam viradas para o lado de fora das suas células e funcionam como botões de um painel de controle. Quando o etanol encaixa no receptor GABA, ele inibe a atividade dos neurônios. Isso deixa você relaxado, claro – mas também sem noção, porque as áreas responsáveis por coisas como raciocínio lógico e memória tiram férias. De quebra, os drinks impedem a ação de um neurotransmissor chamado glutamato, que serve justamente para contrariar o GABA e pôr a cabeça para trabalhar.

Agora, imagine o seguinte enredo: um vilão com habilidades musicais cria um som capaz de embebedar o ouvinte, gerando um efeito análogo ao acionamento dos receptores GABA só com a audição – sem usar moléculas de etanol reais. Parece forçar a barra até para os padrões da Marvel, mas é essa a promessa implausível das “drogas digitais” – que são oferecidas no mundo real e têm tanto versões genéricas gratuitas quanto as de grife, vendidas por uma empresa chamada I-Doser.

O produto consiste em áudios com 30 ou 40 minutos de duração, chamados “doses”, num formato de arquivo proprietário que só pode ser reproduzido pelo próprio player fornecido pela I-Doser. Esses áudios – que costumam sair por US$ 8,00 e, dizem as instruções, só funcionam com fones de ouvido –, têm títulos que sugerem induzir o sono, catalisar experiências espirituais new age ou simular o efeito de drogas legais e ilegais; álcool, maconha, LSD, cocaína, MDMA…

O software em si é baixável gratuitamente e vem com algumas doses de amostra, mas há uma versão premium paga com funções extras. Os arquivos usam a terminação .drg (uma alusão à palavra “droga”).

O I-Doser foi criado por um artista de currículo misterioso chamado Nick Ashton em 2005, mas voltou à tona na mídia brasileira este ano. Uma apuração da revista piauí rastreou a origem da preocupação a um usuário do TikTok chamado Jonathan Bastos, que viralizou em fevereiro de 2021 com um post de 55 segundos sugerindo a seus seguidores que jogassem I-Doser na busca do YouTube e tivessem um barato gratuito com as versões genéricas desses áudios (Jonathan, diga-se, admite que não teve brisa nenhuma: só fez alarde pelos likes).

Ashton é, para todos os efeitos, um anônimo. Não há uma única foto ou vídeo seu na internet. Algumas de suas poucas aparições são uma breve entrevista no material fornecido pela I-Doser em PDF a jornalistas interessados, e uma sessão de perguntas e respostas por escrito no fórum Reddit. Ele afirma que a dose original – desenvolvida como piloto para o projeto – foi eficaz em 83% dos usuários. (Trata-se do áudio do peiote, um cacto alucinógeno típico da América do Norte.) Fonte? Arial 12. Ashton não dá referências bibliográficas.

Para saber se esse dado tem qualquer chance de estar certo – e explicar o que há de errado com as ditas drogas digitais como um todo –, precisamos começar do começo: entendendo o que são os batimentos binaurais, o suposto princípio ativo por trás delas.

A física do som

O ar é um montão de moléculas de oxigênio e nitrogênio, com pitadas de outros gases. Quando você toca uma corda de violão, ela oscila rapidamente. Vai e volta. Quando ela vai, empurra as moléculas e surge uma zona de alta pressão atmosférica, mais densa. Quando ela volta, sobra espaço para as moléculas. É uma zona de baixa pressão, menos densa.

Essas oscilações rápidas na densidade do ar são uma onda sonora. O número de idas e vindas da corda por segundo é chamado de frequência, medida em hertz (Hz). Sons mais agudos tem frequências mais altas; sons mais graves, frequências mais baixas.

Com essa informação em mente, façamos um experimento imaginário. Primeiro, você reproduz um som de 440 Hz em uma caixa – uma nota Lá no padrão da música ocidental. Agora, você toca uma frequência de 444 Hz em outra caixa. Por causa dessa pequena diferença de 4 Hz, a segunda nota vai soar como uma versão desafinada da nota original.

Por “desafinar”, entenda: as zonas de alta e baixa pressão que esse par de sons forma no ar – os picos e vales de cada onda – perdem sincronia. Em alguns lugares, eles coincidem, aumentando a intensidade do som. Em outros lugares, um pico e um vale se cancelam, e há silêncio. O resultado é que seu cérebro ouve essas duas notas desafinadas como um padrão alternado de sons e silêncios –, como se alguém estivesse aumentando e diminuindo o volume das caixas. O nome desse fenômeno é batimento.

Os batimentos binaurais

Um vídeo é uma sequência de fotos exibida muito rápido – 24 ou 30 frames por segundo são as taxas mais comuns. A velocidade é tão alta que o cérebro se torna incapaz de diferenciar cada imagem como algo estático, e acaba tendo ilusão de movimento. Assim são possíveis o cinema e a TV. Se você exibisse apenas cinco ou seis imagens por segundo, por outro lado, o cérebro as entenderia como fotos separadas.

Algo parecido ocorre com o som: se o baterista mais rápido do mundo acertasse um tambor mais do que vinte vezes por segundo, os ouvintes perderiam a capacidade de distinguir cada impacto separadamente – e passariam a entender o batuque como um som contínuo. Uma nota musical. Quanto mais rápido o percussionista batesse, maior seria a frequência e mais aguda a nota resultante.

Com essa informação em mente, vamos voltar ao nosso experimento. Lembre-se: os dois sons que escolhemos (440 Hz e 444 Hz) geram um batimento de 4 Hz. Quatro oscilações de som e silêncio por segundo são fáceis de discernir individualmente.

Porém, se você aumentar a distância entre os sons – digamos, 440 Hz e 500 Hz –, haverá um batimento de 60 Hz. Isso já é bem rápido, e o cérebro não distingue mais os silêncios. Ele interpreta o batimento como um terceiro som, soando em paralelo com os outros dois. (Existem, inclusive, peças experimentais em que o compositor monta duas melodias agudas de modo a gerar uma melodia mais grave, feita toda de batimentos.)

Batimentos binaurais

As supostas “drogas digitais” usam dois sons, um em cada fone, que fazem seu cérebro ouvir um terceiro som, imaginário. É um fenômeno interessante, mas não causa as mudanças fisiológicas ou alucinações de uma droga real.

<span class="hidden">–</span>João Montanaro/Superinteressante

1 – Como se gera um som

O cone de um alto-falante vai para frente e para trás dezenas ou centenas de vezes por segundo. Isso é uma vibração. Ao ir para frente, ele empurra as moléculas de gás que formam o ar – e gera uma região “espremida”, de pressão alta.

<span class="hidden">–</span>Carlos Eduardo Hara/Bruno Vaiano/Superinteressante

2 – A onda sonora

Já quando o cone recua, ele libera espaço e a pressão cai. O som é essa alternância entre zonas de alta e baixa pressão do ar, gerada pelo vai e vem de uma vibração. Se a vibração ocorre, por exemplo, 10 vezes por segundo, temos um som de 10 Hz.

<span class="hidden">–</span>Carlos Eduardo Hara/Bruno Vaiano/Superinteressante

3- A frequência

Quando dois sons com frequências bem definidas – pense em duas notas – se encontram no ar, eles interferem entre si. Toda vez que a pressão alta de um encontra a pressão baixa de outro, elas se cancelam e há um breve silêncio.

4 – O batimento

Um som de 200 Hz e um de 250 Hz, por exemplo, têm 50 Hz de diferença. Assim, a interferência vai gerar 50 desses minissilêncios por segundo. O nome desse fenômeno é batimento, e ele dá a impressão de que você ouve uma terceira nota, de 50 Hz.

<span class="hidden">–</span>Carlos Eduardo Hara/Bruno Vaiano/Superinteressante

5 – O batimento binaural

Se você tocar o som de 200 Hz em um fone de ouvido e o som de 250 Hz no outro, eles não chegam a se encontrar na atmosfera para interferir. Mas seu cérebro faz as contas e ouve o som imaginário de 50 Hz, uma ilusão chamada batimento binaural.

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Explicamos tudo isso para chegar ao seguinte: o que os áudios do I-Doser fazem é simplesmente emitir duas notas ligeiramente desafinadas, uma em cada fone, para gerar um batimento. Porém, esse é um caso especial de batimento. As duas notas, afinal, estão entrando direto em cada ouvido – não chegam a se encontrar no ar. O batimento, nesse caso, é uma criação do cérebro: o órgão calcula um terceiro som imaginário, baseado nos inputs de cada ouvido. Essa ilusão psicoacústica se chama batimento binaural.

A empresa alega que a frequência do batimento binaural de alguma forma é capaz de se sincronizar com a frequência das ondas cerebrais do usuário da “droga digital” – e que essa sincronização modifica seus estados mentais, induzindo alterações cognitivas e fisiológicas similares às causadas pela via bioquímica de uma droga real.

Pena que não é tão simples (e eles sabem. O rodapé do site informa: “o I-Doser não faz alegações quanto à sua eficácia, e elas [as doses] devem ser usadas apenas para entretenimento”). Para entender por que isso não tem como funcionar, o próximo passo é saber o que são ondas cerebrais.

Na crista da onda

Seu encéfalo tem módulos com funções variadas: coordenação motora, contração de músculos involuntários, linguagem etc. Cada uma dessas áreas usa os neurônios de um jeito, de modo que o sinal elétrico gerado dentro do crânio é um pouco caótico. Porém, analisando do lado de fora da cabeça – por meio do exame chamado eletroencefalograma (EEG), que usa eletrodos no escalpo –, as flutuações extremas ficam mais tênues e emergem padrões discerníveis.

Esses padrões são as chamadas ondas cerebrais. Se você está acordado e assistindo TV, por exemplo, nota-se uma frequência média de 13 Hz a 30 Hz, e temos as chamadas ondas beta. Uma pessoa dormindo em sono REM, por outro lado, exibe frequências de 4 Hz a 7 Hz, as ondas teta. Por sua vez, alguém muito concentrado tem ondas gama, com mais de 30 Hz. Há vários tipos de onda, cada uma batizada com uma letra grega. Elas refletem estados bem gerais dos examinados.

Dito isso, vamos à alegação do I-Doser: a suposta sincronização entre batimentos binaurais e ondas cerebrais. Sempre que você alimenta seu cérebro com alguma informação, ele a processa e isso muda a leitura no EEG de alguma maneira. Por exemplo: ouvir música é uma atividade associada a ondas beta. Então, ouvir qualquer música vai gerar ondas beta de frequência similar – não importa se a música é mais rápida ou mais lenta, mais aguda ou mais grave. Seu cérebro está processando sons, e ponto: essa é a assinatura elétrica dele ao realizar essa tarefa. A frequência dele não tem a ver com a da música.

“Não é porque seus nervos auditivos estão acionados em uma certa frequência que todo o sistema nervoso vai se sincronizar com isso”, diz à Super Susan Rogers – que foi engenheira de som do Prince e de mais de dez outros artistas antes de virar pesquisadora de psicoacústica na Faculdade Berklee, em Boston. “Nosso sistema nervoso tem muitos inputs: todos os nossos sentidos, memórias e desejos, o metabolismo, os níveis de estresse e muito mais. Se fosse assim, ouvir um batimento binaural de 4 Hz [frequência das ondas teta] nos faria dormir.”

Vamos dar o braço a torcer: existem, na literatura científica, algumas evidências limitadas de que certos fenômenos rítmicos – como uma luz piscando, por exemplo (1) – podem gerar uma resposta rítmica sincronizada detectável no EEG.

Esses estudos, porém, costumam ter deficiências metodológicas. Como, por exemplo, um número muito pequeno de voluntários examinados, na casa das dezenas, o que obriga tentativas de replicação com mais voluntários (de preferência, realizadas por pesquisadores que não tenham a ver com o estudo original, para garantir idoneidade).

Outros falham na hora de filtrar fatores de confusão: um estudo que associou a escuta de batimentos binaurais com uma redução no cansaço mental seria promissor caso os voluntários não tivessem também praticado meditação mindfulness por quatro semanas – o que torna impossível saber qual das duas coisas fez efeito. (2)

Um artigo cuidadoso de 2019 detectou algum grau de sincronização da atividade cerebral com os batimentos. Mas os batimentos binaurais não foram mais eficazes que os comuns (o que invalida a afirmação de que só os binaurais funcionam, um pilar da propaganda do I-Doser). Eles também não encontram qualquer mudança de humor ou comportamento resultante da exposição aos batimentos. (3)

Em suma: os neurocientistas não sabem até que ponto dá para sincronizar nossas ondas cerebrais a sons e outros estímulos rítmicos. E também é incerto que essa sincronização seja capaz de mudar nossos estados mentais (ou seja, que ouvir uma frequência menor que 4 Hz, por exemplo, nos ajude a dormir). Os estudos existentes são pouco promissores – e, de forma geral, quanto mais positivas as conclusões de um artigo nessa área, mais falho é seu método.

As ondas cerebrais

A ideia de que podemos mexer no ritmo em que nossa atividade neuronal oscila – e, com isso, gerar mudanças nos nossos estados mentais – é antiga. Mas não há evidências sólidas de que sons façam isso.

<span class="hidden">–</span>João Montanaro/Superinteressante

1 – As ondas cerebrais
Os neurônios de cada região do encéfalo disparam de maneira diferente conforme as funções que exercem, o que gera um sinal elétrico caótico. Mas alguns padrões emergem: são as chamadas ondas cerebrais, oscilações mais ou menos constantes na atividade do órgão, detectáveis em um eletroencefalograma (EEG). Conheça alguns exemplos:

<span class="hidden">–</span>Carlos Eduardo Hara/Bruno Vaiano/Superinteressante

2 – A alegação

O I-Doser diz que a frequência do batimento binaural nos áudios  influencia o cérebro a produzir ondas de EEG nessa mesma frequência. Isso mudaria nosso estado mental, simulando o efeito de drogas.

3 – Evidências fracas

Alguns estudos relatam neurônios reagindo a estímulos rítmicos, como uma luz piscando 4 – ou batimentos binaurais lentos ajudando com o sono 5. Mas muitas dessas pesquisas usam amostras pequenas, e seus resultados permitem explicações alternativas.

4 – Forçando a barra

Drogas são um passo além: geram alterações bioquímicas complexas no cérebro e os neurocientistas ainda não sabem, em detalhes, como cada uma muda as ondas do EEG. Os batimentos não têm o poder de indução nem a complexidade necessária
para simulá-las.

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Alô, Proerd

Até aqui, falamos de objetivos pouco ambiciosos – como induzir o cérebro ao sono usando um batimento binaural em uma frequência que corresponde às ondas cerebrais quando estamos dormindo. Se mesmo essa prática simples não encontra respaldo, e quanto a simular drogas?

Existem estudos sobre como diferentes substâncias reforçam ou não cada onda cerebral (muitos realizados no Instituto do Cérebro da UFRN, aqui no Brasil). As drogas mexem com o corpo em muitos níveis: de indicadores básicos, como taxa de batimentos cardíacos e pressão arterial, a fenômenos complexos, como euforia e alucinações. Isso se traduz, claro, em mudanças complexas na atividade do encéfalo. Várias delas possivelmente sutis demais para se refletirem no EEG – que é impreciso por ser feito de fora do crânio.

Sabe-se, por exemplo, que tanto o LSD como a psilocibina – princípio ativo de um cogumelo mágico – geram uma redução nas ondas teta. Porém, ainda que houvesse um batimento binaural comprovadamente capaz de reduzi-las, ele estaria ignorando que há diferenças entre os efeitos das duas drogas que nem chegam a aparecer no eletroencefalograma (ou que até aparecem, mas ainda não isolamos do ruído).

Ou seja: ainda que a sincronização com batimentos existisse e pudesse induzir estados mentais alterados, seria impossível, pelos conhecimentos atuais, fazer esses estados mentais corresponderem aos das drogas só com base na informação que um EEG é capaz de oferecer. E o batimento, de qualquer forma, é uma única frequência – num contexto em que a redução das ondas teta é só a ponta de um iceberg de alterações.

Por que algumas pessoas relatam sentir algo com o I-Doser? Efeito placebo e vieses cognitivos, essencialmente. Somos extremamente sugestionáveis – especialmente no caso de usuários que já tiveram experiências com as drogas reais, e têm lembranças vívidas de seus efeitos. Drogas digitais, portanto, não viciam, porque não funcionam. Se você conhece algum usuário, dê a letra: o único perigo é ouvir alto demais – e arrebentar seus tímpanos. Coisa que é melhor fazer num show.

Consultamos: livros Acústica musical em palavras e sons, de Flo Menezes e O som e o sentido, de José Miguel Wisnik; vídeo “Combination tones”, de Adam Neely; textos “I-Doser: musiquinha estranha ou ruído de fundo agradável, nada mais!”, de Jorge Quillfeldt, “Binaural beats: not digital drugs”, de Brian Dunnning e “I-Doser, batimentos binaurais e a farsa das drogas digitais”, também de Bruno Vaiano, na RQC.

Referências bibliográficas (1) artigos “Modification of brain oscillations via rhythmic light stimulation provides evidence for entrainment but not for superposition of event-related responses”; (2) “On-the-spot binaural beats and mindfulness reduces the effect of mental fatigue”; (3) “Binaural beats through the auditory pathway: from brainstem to connectivity patterns”; (4) “Brainwave entrainment for better sleep and post-sleep state of young elite soccer players – a pilot study”; (5) “Tagging the musical beat: neural entrainment or event-related potentials?”.

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