Blitz de trânsito envolvendo homem negro e policial branco termina com ato surpreendente


À primeira vista, parece mais uma daquelas fotos virais que não aguentamos mais ver. A imagem mostra um policial estadual branco e um homem negro durante uma blitz de trânsito em um dia claro e ensolarado. O policial inclina os braços grossos pela janela aberta do passageiro para agarrar a mão direita do homem negro. As costas do homem estão grudadas no banco do passageiro, e seus olhos estão bem fechados. Ele parece estar se encolhendo de dor.

Mas esta foto está sendo amplamente compartilhada por outro motivo. O policial parece estar entrando no carro para ajudar, não para prejudicar. E o encontro foi descrito por aqueles que o testemunharam não como trágico, mas inspirador.

“Para mim, foi um momento muito bonito ver isso acontecer entre meu pai e o policial”, disse Ashlye V. Wilkerson, de 39 anos, que dirigia o carro e tirou a foto sorrateiramente.

O policial estadual ainda tem dificuldade de digerir o que aconteceu naquela tarde.

É apenas uma daquelas coisas que não consigo explicar

Policial Jaret Doty, da Patrulha Rodoviária Estadual da Carolina do Norte, nos Estados Unidos

Doty pensou que ele estava parando um estranho naquele dia. Acontece que ele já havia passado pela mesma situação que o homem cuja mão ele segurava.

A ‘filhinha do papai’, cuidando de seu pai doente

O encontro fortuito entre os dois ocorreu em 28 de março, uma tarde de segunda-feira. Ashlye estava dirigindo seu Volvo prata 2016 para o sul, na rodovia Interstate 85, no condado de Rowan, Carolina do Norte. Ela pegou seu pai, Anthony “Tony” Geddis, que havia acabado de completar uma rodada de tratamentos de quimioterapia no Centro Médico da Duke University, e o estava levando de volta para sua casa em Columbia, na Carolina do Sul.

Os papéis de pai e filha se inverteram naquela tarde. Durante toda a vida de Ashlye, foi o pai quem cuidou dela. Ele nunca perdeu uma reunião de pais e professores, a levava aos treino das líderes de torcida e foi aos jogos de futebol do ensino médio nas noites de sexta-feira para vê-la atuar.

Embora ela tenha crescido, se casado e tido dois filhos, ela ainda se chamava de “filhinha do papai”. Ela gostava de passar o tempo com o pai bem vestido, que muitas vezes usava botas de caubói com jeans engomados, colônia inesquecível e camisas com monogramas com suas iniciais “TG”.

Professora adjunta, autora e palestrante, Ashlye Wilkerson disse que muitas vezes pedia ao pai para acompanhá-la a eventos que seu marido, Kobie, não podia ir.

“Meu pai era minha pessoa favorita no mundo”, disse ela. “Mesmo na idade adulta eu chamava meu pai para ser meu acompanhante nos lugares”.

Às 14h15 daquela tarde, Wilkerson ouviu uma sirene e viu luzes azuis piscando em seu espelho retrovisor.

“Oh Deus, eu estou correndo, pai”, disse ela.

“Ok. Ok”, disse ele, tentando acalmar sua filha.

No banco de trás de Wilkerson estavam suas filhas, Alana, de 8 anos, Ariah, de 5, e sua mãe, a reverenda Fannie M. Geddis. Ela parou no acostamento da rodovia e esperou.

A família tinha razões bem documentadas para estar ansiosa. Para muitos motoristas negros, não existe uma parada de trânsito rotineira. Wilkerson tinha visto vários vídeos de motoristas negros desarmados sendo mortos por policiais acionados rapidamente.

“Estávamos muito conscientes de como as coisas podem se desenrolar”, disse ela.

Ao mesmo tempo, Wilkerson diz que não queria prejulgar. Ela tentou manter a mente aberta enquanto o policial se aproximava do lado do passageiro de seu carro.

“Não acho justo caracterizar todo mundo com base nas ações de alguém”, disse ela.

Anthony “Tony” Geddis com a filha, Ashlye Wilkerson, e a esposa Rev. Fannie M. Geddis / Ashlye Wilkerson / Arquivo Pessoal

Uma espera tensa durante a parada de trânsito

Seu pai, Geddis, já havia aberto o vidro da janela quando o policial chegou ao carro.

O policial Doty se apresentou. Ele é policial estadual há 17 anos. Doty decidiu, ainda adolescente, se tornar um policial depois de perder um amigo de infância por causa de um motorista bêbado.

“Senhora, você sabe a que velocidade estava?”, disse ele depois de se apresentar. “Eu vou precisar de sua carteira de motorista e registro do veículo”.

Wilkerson se desculpou e abriu o porta-luvas. Geddis estava tão enfraquecido pelos tratamentos de quimioterapia que mal conseguia falar além um sussurro. Mas ele ganhou forças para defender a filha.

“Esta é minha menininha”, disse ele ao policial Doty. “Ela está me levando para casa depois um tratamento de quimioterapia no centro de câncer em Duke”.

Doty não disse nada e apenas assentiu. Ele pegou os documentos de Ashlye Wilkerson e voltou para o carro.

Wilkerson e sua família esperaram. E esperaram.

“Puxa, por que ele está demorando tanto?”, Wilkerson disse ao pai. “Fico pensando o que está acontecendo.”

Mas Doty, de 45 anos, não estava apenas analisando as informações de Wilkerson; ele estava revendo sua própria vida.

Ele disse à CNN como se adaptou à leitura da linguagem corporal das pessoas ao se aproximar de veículos parados. Ele imediatamente notou que o pai de Wilkerson estava largado no banco, enfraquecido pela dor.

Ele também notou como o homem foi rápido em proteger sua filha, falando em seu nome. Doty reconheceu esse instinto. Ele compartilhava isso.

Doty é pai de uma menina de 12 anos, Avery. Ela também é uma líder de torcida, como Wilkerson já foi. Doty e sua esposa, Abby, a levaram a inúmeras competições de líderes de torcida. Eles adoram Avery e seu irmão Cooper, de 15 anos, e já os levaram ao Walt Disney World, na Flórida, pelo menos sete vezes.

“Eu poderia dizer que ela era a filhinha do papai”, disse Doty sobre Wilkerson. “Eu faria o mesmo pela minha filha.”

Policial estadual Jaret Doty com a esposa, Abby, e os filhos, Cooper and Avery / Jaret Doty / Arquivo Pessoal

O policial estadual tomou uma decisão incomum

Mas Doty também compartilhava outra conexão com Geddis. Ele notou que Geddis tinha uma bolsa presa à área da pélvis. Doty já havia sido diagnosticado com colite ulcerativa e teve que se submeter a uma cirurgia para remover partes de seu cólon. Ele também teve que usar uma bolsa presa ao estômago para tratamento.

A doença entrou em remissão, mas voltou “com tanta força”, enfraquecendo tanto seu corpo que não tinha forças para sair de casa.

“Eu senti como se estivesse morrendo”, disse ele.

Doty conta que os médicos lhe disseram que ele provavelmente teria desenvolvido câncer de cólon se sua doença não tivesse sido tratada. Enquanto se recuperava de uma cirurgia no hospital, Doty fez um voto. Pensou em todas as pessoas que oraram por ele e o aconselharam.

“Eu disse que se eu pudesse tocar uma pessoa, ou ajudar alguém a superar sua doença, eu o faria”.

Doty pensou nessa promessa enquanto estava sentado em sua viatura, imaginando o que fazer a seguir. Ele sabia que não ia dar a Wilkerson uma multa por excesso de velocidade. Mas havia algo mais que ele pudesse fazer?

Doty fechou o livro das multas e abriu a porta da viatura. Ele voltou para o carro de Wilkerson e virou-se para Geddis.

“Senhor, você se importa se eu perguntar que tipo de câncer você tem?”

“Não, eu não me importo. Eu tenho câncer de cólon”.

Doty respirou fundo e olhou para Geddis.

“Posso orar por você?”, disse Doty.

“Claro”, disse Geddis. “Eu absolutamente acredito na oração.”

Geddis era presidente do conselho de diáconos de sua igreja, e sua esposa era a pastora. Ele havia realizado estudos bíblicos particulares com sua esposa em casa. Ele citou passagens dos Salmos e amava o hino “Jesus, Keep Me Near the Cross” (“Jesus, Mantém-me Perto da Cruz”, em tradução livre). E ele havia criado um ministério para orientar pessoalmente jovens negros.

Geddis levantou a mão direita e agarrou a de Doty. Ambos os homens baixaram a cabeça.

“Pai do Céu…”, Doty começou.

Wilkerson ficou tão emocionada com o que ela estava vendo que pegou seu celular e tirou uma foto silenciosamente.

Depois que Doty terminou de orar, ele pressionou algo na mão de Geddis.

“Eu só quero que você saiba que você tem outra pessoa orando por você em sua jornada”, o policial disse a ele.

Doty, que estava apoiado na janela do carro, se endireitou e se despediu de Wilkerson e seu pai. Em vez de dar uma multa a Wilkerson, ele a liberou com um aviso.

“Vocês todos dirijam com segurança”, disse ele.

Wilkerson ligou o carro e voltou a dirigir, tentando digerir o encontro. O pai dela não contou nem a aos seus amigos mais próximos que ele tinha câncer, porque não queria que eles se preocupassem. Seu pai não falou nada enquanto eles dirigiam para casa, mas ela podia dizer que ele ficou tocado pelo gesto de Doty quando ela deu uma espiada nele.

Seus olhos estavam cheios de lágrimas.

Um momento privado torna-se uma história inspiradora

Dois meses depois, foi a vez de Ashlye chorar. Seu pai morreu em 22 de maio, depois que o câncer de cólon se espalhou. Ele tinha 61 anos.

Várias semanas depois do funeral, ela estava lembrando de seu pai quando seus pensamentos voltaram para aquele encontro na estrada. Ela pensou em como, apesar de sua condição física debilitada, seu primeiro instinto foi protegê-la.

Ela entrou no LinkedIn e postou uma homenagem ao pai, escrita como se estivesse falando diretamente com ele. Ela se lembrou da blitz de trânsito: “Como você sempre fez, você rapidamente pulou em minha defesa”.

E então ela pensou no policial estadual, cujo nome ela não sabia.

“Agradecimentos sinceros a este oficial que orou por e com você naquele dia”, escreveu ela.

Wilkerson também postou a foto que tirou daquele momento. Seu post logo chamou a atenção no LinkedIn e se espalhou para o Facebook, Instagram e Twitter enquanto as pessoas compartilhavam a imagem e a história por trás dela.

Ela recebeu mais de 4 mil comentários de uma ampla variedade de pessoas, muitas delas dizendo como aquela blitz de trânsito restaurou um pouco da esperança na humanidade.

Então, ela acrescentou uma mensagem póstuma atrevida ao pai.

“Não fique muito bravo comigo”, escreveu ela. “Eu sei que você não gostava de postar nas redes sociais. Mas você era incrível demais para não falar de você. Eu te amo, pai. Seu legado está seguro comigo”.

A história acabou chegando à Patrulha Rodoviária Estadual da Carolina do Norte. Um porta-voz de lá enviou uma mensagem para Ashlye.

“Lamentamos profundamente a perda de seu pai, Sra. Wilkerson”, dizia. “Estamos gratos que nosso membro foi capaz de oferecer um momento de compaixão e consolo para você e seu pai enquanto você atravessava a Carolina do Norte. Obrigado por ser tão gentil em capturar o momento e compartilhá-lo com os outros”.

E então a notícia da história chegou a Doty. Ele foi pego de surpresa. Ele não sabia o que havia acontecido com Geddis, ou que uma foto havia sido tirada de seu encontro.

Em uma entrevista à CNN, sua voz ficou solene quando contou sobre a morte de Geddis.

“Isso não é sobre mim”, disse ele. “Eu não quero nenhum reconhecimento. Eu não fiz nada. Este homem perdeu a vida, e sua filha o está honrando. Eu quero que ela seja capaz de honrá-lo do jeito que ela quer, e não por algo que eu fiz”.

Doty disse que muitas vezes ora em particular pelas pessoas que ele para na estrada. Mas no caso de Geddis foi diferente.

“Esta foi a primeira e única vez que pedi e orei verbalmente por alguém em voz alta na interestadual”, disse ele.

Ele ainda está perplexo com o momento do encontro.

“Não posso descrever quais eram as chances de pará-los, porque há centenas de milhares de carros que passam pela [Interestadual] 85 toda semana”, disse ele.

Wilkerson tem mais do que uma foto para marcar esse encontro. Ela também tem outra coisa. Doty pressionou um objeto de bolso na palma da mão direita de seu pai durante a oração compartilhada.

Seu pai o manteve em sua cômoda até o dia em que ele morreu.

“Minha mãe me deu o objeto depois que ele faleceu”, disse ela. “E eu o mantenho na minha cômoda”.

A recordação é um lembrete de outra ligação que seu pai compartilhava com Doty.

É uma cruz de metal prateada.

Cruz de prata que o policial estadual Jaret Doty entregou a Tony Geddis durante oração / Ashlye Wilkerson / Arquivo Pessoal

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