O verdadeiro gol de placa?


Edward Aloysius Murphy Jr. nasceu no mesmo ano e era um bebezinho de 53 dias quando Fluminense e Santos se enfrentaram pela primeira vez, lá em 1918. A chupetinha dele, com certeza, sempre que escapava caía no chão virada pra baixo, tipo pão com manteiga. Só mesmo o velho e bom major norte-americano, criador da famosa Lei que leva o seu nome, para explicar o que aconteceu ontem no Maracanã, quando e onde vimos a pintura de gol assinalado pelo garoto-gênio Pelé, na vitória (3 x 1) do Peixe sobre o tricolor carioca. Revelo a vocês, queridos leitores e leitoras de 1961, que daqui a meio século, em 2022, de ‘quando’ venho, o espetacular tento ainda será lembrado, citado e cultuado, não apenas pela beleza e plasticidade, mas também por duas curiosidades:

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1) Em poucos dias, um jovem jornalista paulistano homenageará o craque presenteando o estádio com uma placa de bronze que registrará o lance, fazendo surgir uma expressão eterna no dialeto do futebol brasileiro: ‘Gol de Placa’, sinônimo de ‘gol bonito’, ou melhor, um patamar acima disso;

2) Quererá o destino que as imagens filmadas da arrancada de Pelé até as redes adversárias, não do jogo todo, apenas desse momento, sejam perdidas, sim, desapareçam – sei lá porquê. Resumo da ópera: justamente o gol que se consagrará como maior referência e a gênesis de sua melhor definição, o ‘pai’ de todos os golaços, vai simplesmente… Fiiiiiiiu! Sumir! Murphy na veia!

Será sempre um mistério insolúvel o desaparecimento desse valioso pedaço de nitrato de celulose, o que só aumentará a mística sobre a jogada. Ciente disso, fiz questão de trazer do futuro um pequeno objeto muito útil e comum no próximo século: uma filmadora que acumula funções de troca de mensagens e, se não me engano, também servirá como telefone. A missão: registrar discretamente o lance, que, eu sabia, se daria entre 40’ e 41’ do primeiro tempo. E lá fui eu, com a mesma determinação dos zagueiros tricolores para barrar o avanço de Pelé e ainda sem ter na mente o mantra ‘murphyano’: ‘Se alguma coisa pode dar errado, dará. E mais, dará errado da pior maneira, no pior momento e de modo que cause o maior dano possível’.

Foi um belo domingo ensolarado, em grande parte graças ao fato de, bom malandro, eu ter levado comigo um artefato decisivo para as influenciar as condições do tempo. Tá lá na Lei de Murphy: “Levar um guarda-chuva torna menos provável que chova”. Mais de 80 mil pessoas acorreram ao Maraca e as dificuldades começaram já na bilheteria, quando ainda tentava comprar meu ingresso. Natural: como ensinou o guru, “a fila do lado sempre anda mais rápido”. O público presente, porém, será outro mistério, pois nos próximos 50 anos escreverão de tudo, de 30 mil a 130 mil pagantes. No ‘olhômetro’, eu cravaria 80 mil, mas serão mais de 500 mil a jurar que estavam presentes e testemunharam tudo. Também serão divergentes outras informações sobre a partida, como a quantidade de defensores driblados por Pelé, 6 ou 7, o momento do gol, 40’ ou 41’, e ainda se Pelé deu ou não um drible no goleiro Castilho. Aos futuros pesquisadores do futebol, o guru Murphy ensinou: “A informação mais necessária é sempre a menos disponível”.

Mas foram sete os tricolores batidos, agora posso garantir. Feito que conseguirá se destacar entre os fatos marcantes desse 1961, que, creiam, será bem animado. Nos Estados Unidos, o tal John F. Kennedy vai virar lenda por entrar na Presidência; no Brasil, Jânio Quadros também, mas saindo. E ainda teremos o primeiro cosmonauta no espaço – americano ou russo? Façam suas apostas –, o primeiro tijolinho cimentado para um Muro gigante na Alemanha e a explosão, no oceano, daquela que será a maior bomba atômica detonada na História. Reparem: até em casos de sucesso, Murphy tem muito a nos ensinar: “Se a experiência funcionou na primeira tentativa, tem algo errado”.

Foi um jogo disputado. Mas quem tem Pelé… O garoto, já com 20 aninhos, continua mostrando a genialidade que encantou o mundo há três anos, na Suécia. Goleador nato, terminará o ano marcando 111 gols em 75 partidas. E anotem: ultrapassará, com folga, a marca de 1.000 gols – ‘Nota da Redação (2022): 1.283 gols em 1.375 jogos’ –, eternizando até lances em que a bola será teimosa ao não entrar. Quando alguém indagar sobre o mais bonito deles, o lance de ontem rivalizará com outro construído na Rua Javari, contra o Juventus (2 de agosto de 1959, 4 x 0 para o Santos, mais um sem imagens, existem apenas quatro fotos meio fora de foco). Daí minha preocupação de, durante toda a primeira etapa, não me distrair justo no momento da jogada e perder a oportunidade de, enfim, filmá-la para a posteridade. ‘Sacumé’: ‘Todo corpo mergulhado numa banheira faz tocar o telefone’ – outra máxima do mestre.

Deixei 2022 a poucos dias da abertura do Campeonato Brasileiro de 2022, um novo confronto entre Fluminense e Santos, clubes que chegarão ao próximo milênio com a fama de serem os maiores ‘celeiros de jovens craques’ no futebol nacional. E com estatísticas acirradas: serão 103 jogos, com 40 vitórias para o Fluminense; 41 para o Santos. A de ontem já se desenhava desde os 6’, com o 1 x 0 marcado por Pelé. A todo instante, as infalíveis leis se manifestavam em campo. Por exemplo: “A única falta que o juiz apita com absoluta certeza é aquela em que ele está absolutamente errado”. O momento crucial se aproximava. Quando o lateral Dalmo tocou displicentemente a bola pra Pelé, não podia imaginar que estava dando início ao espetáculo. “Tudo é possível. Apenas não muito provável”, ensina a ‘tábua’. Mas Pelé é o Rei do Impossível.

‘Ele’ tava ali na ‘meiúca’, também conhecida como intermediária. Na primeira arrancada, cheio de ginga, já deixou pra trás Pinheiro, Clóvis e Altair. Depois vieram outros, e ele firme, bola colada aos pés, até se ver diante do goleiraço Castilho. Jogou a bola por um lado, passou pelo outro, e completou pras redes. Lindo! Não teve Valdo ou Telê Santana (o ‘Fio de Esperança’) que segurasse a fera, foram todos batidos. Sem falar em Paulinho ‘Ladrão’, grande roubador de bola do tricolor, que fará nascer outra expressão do dialeto da bola: “Olha o Ladrão!”, alerta de que um adversário está chegando perto! O que se viu e ouviu em seguida também foi singular: sempre dirão que foi a primeira vez que uma torcida, diante do gol contra sua meta, ficou de pé e aplaudiu o adversário. Dois minutos de palmas, quase o mesmo tempo de duração da jogada do garoto, que sempre encontra os melhores e impensáveis caminhos até o gol, desconstruindo outro mandamento: ‘Um atalho é sempre a distância mais longa entre dois pontos’. Pra Pelé, não!

Reconstituição do ‘gol de placa’ de Pelé –Baú do Esporte/Reprodução/Youtube

Ao ouvir as palmas, Pelé acenou para as arquibancadas, mas a ovação se repetiu minutos depois, quando ele deixava o campo para o intervalo. O ‘homem de preto’, Olten Aires de Abreu, largou o apito e também cumprimentou o jogador. “Foi uma honra!”, disse ao craque. De onde eu estava, pude ver o tal jovem jornalista, Joelmir Betting, sentado ao lado do tricolor Nelson Rodrigues. Repórter do jornal ‘O Esporte’, o palmeirense Joelmir escreverá na placa: ‘Neste estádio, Pelé marcou no dia 5 de março de 1961 o tento mais bonito da história do Maracanã’. ALERTA DE SPOILER: Daqui a 40 anos, em 2001, Pelé vai retribuir a homenagem com outra carinhosa placa: ‘Gratidão eterna do autor do gol de placa ao autor da placa do gol’. Novamente Sua Majestade desmentindo o Rei das Variáveis e das Probabilidades: nem ‘tudo que começa bem, termina mal’ …

Homenagem do jornal O Esporte ao memorável gol –Reprodução/Reprodução
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O sumiço do pequeno pedaço de filme que registrou (em preto e branco) a cena terá consequências até no cinema. No futuro, para não deixar a proeza de fora de um documentário sobre o craque, os produtores vão reconstituir a cena com um jovem jogador – Toró, ironicamente criado no Flu – no papel de protagonista. Sinto informar que também vai desaparecer, por muito tempo, a própria placa que será instalada no saguão de entrada do Maracanã. Mas graças aos Deuses do Futebol, será localizada nos porões do estádio. Quase ao acaso, durante uma reportagem de TV, claro! Pode conferir lá no Código-mor: “Você sempre encontra aquilo que não está procurando”. Ou ainda: “Você sempre acha algo no último lugar que procura”.

Anotem: a expressão ‘gol de placa’ vai ganhar os dicionários e versos de música de um artista que já vem chamando a atenção com suas canjas nas boates de Copacabana e Ipanema: Jorge Ben. O que Pelé fez foi mesmo um “um gol de anjo, um verdadeiro gol de placa”. Quem viu, viu! Sinto informar que não poderei retornar ao futuro levando as imagens tão desejadas do gol. “Entre dois acontecimentos prováveis, sempre acontece um improvável”, certo? Pois bem: ao levar a mão ao bolso, para sacar meu aparelhinho mágico de filmagem, me dei conta de que ele havia sido surrupiado em algum momento no trajeto pelas rampas do Maraca. E era um modelo caríssimo, que eu tinha acabado de comprar. “Se há possibilidade de várias coisas darem errado, todas darão, ou a que causar mais prejuízo” – Murphy também. E junto foi minha carteira, com os cruzeiros que trouxe para pagar o táxi entre o estádio e a Máquina do Tempo. Vocês sabem, né? “Nada é tão ruim que não possa piorar…”

PARA VER A RECONSTITUIÇÃO DO ‘GOL DE PLACA’

PARA OUVIR A NARRAÇÃO DO LANCE

FICHA TÉCNICA
Fluminense 1 x 3 Santos

Competição: Torneio Rio São Paulo (segunda rodada)
Local: Maracanã, Rio de Janeiro
Data: 5 de março de 1961 (domingo)
Público: cerca de 80 000
Renda: R$ 2.685.317,00
Árbitro: Olten Ayres de Abreu

FLUMINENSE: Castilho, Jair Marinho, Pinheiro, Clovis (Paulo) e Altair; Edmilson e Paulinho Ladrão; Telê Santana (Augusto), Valdo, Jaburu e Escurinho. Técnico: Zezé Moreira

SANTOS: Laércio, Fioti, Mauro, Calvet e Dalmo; Zito e Mengálvio (Nei); Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe (Sormani). Técnico: Lula

Gols: Pelé (aos 6’ e, o “de Placa’, aos 41’ do 1ºT); e Pepe (aos 6’, para o Santos); e Jaburu (Fluminense) aos 41’ do 2ºT) 

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