Do lado de fora do Doha Exhibition & Convention Center, em West Bay, palco do sorteio dos grupos da Copa do Mundo de 2022 que acontece nesta sexta-feira, 1º de abril, às 13h (de Brasília), o Catar ainda corre contra o tempo para concluir duas importantes missões. A primeira é desmontar os canteiros de obra que transformaram a paisagem de Doha e seus arredores em lugares empoeirados e esburacados. Os tapumes proliferam por todos os cantos e enchem a cidade com o ruído das máquinas, mesmo tarde da noite. A segunda é tentar limpar a barra da organização do Mundial com relação a problemas com as condições de trabalhadores. Para colocar de pé modernas e enormes arenas de concreto e aço, como as 378 toneladas que compõem o estádio Al-Janoub, onde antes só havia areia, pedras e arbustos secos, o país enfrentou uma série de questionamentos e denúncias.
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Desde 2013, quando uma investigação da Confederação Sindical Internacional – ITUC, na sigla em inglês – estampou as páginas do jornal britânico The Guardian, as condições de trabalho de operários estrangeiros estão sob escrutínio. Falou-se das jornadas extenuantes, com duração entre 12 e 14 horas, em muitos dias com temperaturas beirando os 50°C. E também das péssimas condições de higiene dos alojamentos, mesmo durante a pandemia de Covid-19. Houve denúncias de retenção de passaportes e documentos, para impedir mudanças de emprego, da pagamento da jornada de trabalho por valores irrisórios (equivalente a R$ 6, a hora), de condições insalubres de moradia (casos de até doze operários compartilhando um mesmo alojamento sujo e mal-ventilado), de atrasos e até calote nos salários, por parte de empreiteiros, e de falta de segurança.
Segundo outra reportagem publicada pelo Guardian, no ano passado, até o final de 2020, em uma década, teriam morrido 6.751 operários envolvidos nas obras. Essa conta macabra inclui óbitos de indianos, paquistaneses, bengaleses, nepaleses e cingaleses, mas deixa de fora outras nacionalidades, comuns em canteiros, como quenianos, sul-africanos e filipinos.
“A decisão de conceder ao Catar, o direito de organizar a Copa do Mundo foi tomada de maneira inaceitável”, disse da tribuna do Congresso da Fifa, realizado na última quinta-feira, 31 em Doha, Lisa Klaveness, a presidente da Federação Norueguesa de Futebol e ex-jogadora da seleção do país. “ Não deve haver mais espaço para países-anfitriões que não garantam legalmente a liberdade e a segurança de trabalhadores ou o respeito das pessoas LGBTQIA+”, completou.
Como de acordo com as leis do Catar o homossexualismo continua a ser um crime punível penalmente, no mesmo dia, dezesseis organizações focadas nesta causa expressaram preocupação e pediram garantias de segurança à Fifa e ao Comitê Organizador da Copa de 2022.
Durante seu discurso de encerramento, na mesma tribuna – e, também, depois na entrevista coletiva com os jornalistas, no Centro de Exibições & Convenções de Doha, o suíço Gianni Infatino, presidente da Fifa – preferiu destacar os avanços nos direitos humanos no Catar. “Nos últimos doze anos, desde que este país foi escolhido para organizar o Mundial de 2022, houve um progresso imenso nas questões relacionadas aos Direitos Humanos e Sociais: é certo que ainda há o que melhorar, mas já houve avanços notáveis”.
Um deles, segundo Infatino, foi o fim do draconiano sistema da kafala (“patrocínio ou garantia” em árabe), pelo qual um estrangeiro não pode mudar de trabalho ou ir embora do país sem a permissão de seus empregadores, nem sempre com escrúpulos, muito comum nos países da região do Golfo Pérsico. Ele é definido por organizações de defesa dos Direitos Humanos, como a Anistia Internacional, como uma estrutura de “enganação e abuso”. Segundo um relatório da ONG, há denúncias de empregados que desembarcam no país pagando entre 1.200 dólares a 2.000 dólares a empresas de intermediação de mão-de-obra para obter uma vaga na construção dos estádios. Portanto, bem acima dos cerca de 275 dólares de salário-mínimo no país. Outro agravante é que para pagar essas caras taxas de recrutamento, muitos trabalhadores tomam empréstimos com juros altos. Ou seja, caem em uma teia de dívidas da qual é difícil se livrarem.
Mas, segundo as autoridades catarianas e dirigentes da Fifa, uma série de transformações estão mudando este jogo. Entre elas, houve o reajuste no salário-mínimo, reformas nas leis trabalhistas e um aperto na fiscalização. “O Catar ainda não é um paraíso, ainda há muito trabalho a ser feito, mas mudanças e progressos estão acontecendo ”, afirmou Hassan Al Thawadi, secretário-geral do Comitê Organizador Catar 2022. “Muitos dos que antes nos criticaram tornaram-se nossos parceiros e estamos transformando um evento mundial em uma oportunidade para mudanças”.
O alemão Dietmar Schäfers, vice-presidente do Sindicato Internacional da Construção e Marcenaria (BHI) concorda. Ele foi uma das vozes que alertaram para os problemas dos canteiros de obras do Catar. Em 2013, ajudou a lançar a campanha “Cartão Vermelho para a Fifa – Não há Copa do Mundo sem Direitos Humanos”. Depois, tornou-se interlocutor do governo, voltou ao país, para ver a situação de perto, e viu sinais de progresso.
“Desde 2016, visito canteiros de obras no Catar para verificar as condições de trabalho para os trabalhadores e elas estão melhorando bastante por aqui”, disse Schäfers, à emissora alemã Deutsche Welle. “Melhoraram os equipamentos, como coletes de resfriamento, foram implementados intervalos regulares de trabalho e os empregados agora podem eleger seus próprios representantes nos canteiros de obras”. Um problema, segundo ele, é que a fiscalização não avançou no mesmo ritmo. “No Catar, existem 200 inspetores de obras para a força de trabalho atual de cerca de 900.000 trabalhadores”, disse ele. “Com isso, muitas construtoras que não cumprem as leis não recebem as punições que merecem.”
“Um dos maiores legados, que organizar a Copa do Mundo de 2022 foi transformar o setor da construção civil no Catar”, afirmou nesta sexta-feira, 1º, Tamin El-Abed, diretor de Projeto do Lusail Iconic, sede da final e o maior da competição, com 80.000 lugares. Ele foi feito do zero, onde há uma década nada havia, senão areia e pedras.
Com cerca de 2 milhões de trabalhadores estrangeiros em atividade no país que organizará a próxima Copa do Mundo, a esperança é que essa transformação nos direitos humanos e sociais continue. Se isso acontecer, para o Catar será ainda mais relevante do que estádios arrojados e prédios modernos e uma infraestrutura nova em folha, os centenas de milhares de turistas e a notoriedade, que o direito de organizar a Copa do Mundo de 2022 trouxeram ao país.