Grégoire Akcelrod, o ‘golpista da bola’ que quase jogou uma Champions


A incrível farsa de um verdadeiro jogador de futebol falso.” Como não se interessar por uma história com essa chamada, publicada pela revista francesa L‘Express? Cheguei a ela, depois de alguns poucos cliques, ao ler no site da Panenka, coirmã espanhola de PLACAR, uma reportagem com título também atraente: “O jogador que nunca existiu”. E mais: “Contamos aqui a ascensão e queda de um admirável mentiroso”. Bem-vindo à trajetória de Grégoire Akcelrod, feita de sombras e mistérios. Não foi difícil encontrá-lo, ao contrário. Bastou uma mensagem no LinkedIn e no dia seguinte já tinha o contato do personagem.

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“Bom dia, me chame pelo WhatsApp e conversamos, com todo o prazer”, foi a resposta. Grégoire — Greg, como o chamam, sei agora — atendeu minha chamada por vídeo, na véspera do ano-novo, ao volante de um carro que cortava uma das estradas de Ordino, pequena cidade no noroeste do principado de Andorra. Nevava barbaridade. Achei estranho que ele decidisse dar entrevista enquanto dirigia, mas logo intuí que sua saga estava na ponta da língua, tão nítida, tão evidente, tão pessoal, que não seria complicado assobiar e chupar cana simultaneamente. Como eu já tinha lido o que será narrado nas próximas páginas, por saber que muitos o acusaram de golpista, comecei e acabei a conversa um tanto desconfiado — seria verdade o que ele me contara?

Comecemos pelo fim. Greg terminou dizendo que sua vida estava prestes a virar um documentário, pelas mãos de uma produtora brasileira que vive há quinze anos em Los Angeles e recentemente trabalhou em um longa em torno da biografia conturbada de Ronaldinho Gaúcho. Ele mesmo disse que seria a cereja no bolo para uma publicação do Brasil. “Ah, tá”, pensei com meus botões. “Deve ser parte da mitomania de um sujeito que fez o que fez, só pode ser cascata.” Não haveria produtora, filme, coisa nenhuma. Mas não. Aline Andrade, a produtora, existe, está no IMDb. “Me apaixonei pelo relato do Greg, um cara com coragem de enfrentar tudo para alcançar seus anseios”, disse Aline ao telefone, horas depois. “É um tema de interesse universal, dará um filme muito bom, tenho certeza”. Eu, que saíra da conversa com Greg ressabiado, desconfiado de tudo o que ele me contou porque no fim lançou uma fábula de cinema, percebi que tinha esbarrado numa peripécia folhetinesca aparentemente real.

O tal documentário não era lorota. O quixotismo de Greg é fascinante, como se lerá aqui — mas, antes, é bom lembrar de um outro detalhe, lá no meio do bate-papo que soou inverossímil. Tão improvável que daria coisa de cinema. Foi assim: Greg lembra que o ombro amigo a salvá-lo dos momentos de profunda tristeza, quando tudo parecia dar errado, na infância e adolescência, foi a avó paterna. Raïssa nasceu em 1915, na Moldávia, e, aos 11 anos, migrou com os pais para a França. Ela morava em um bairro elegante e caríssimo de Paris, aos pés da Torre Eiffel. Raïssa era o nome de batismo, mas ficou conhecida como Nita Raya, bonita e exímia dançarina.

Entre 1937 e 1946, durante a II Guerra Mundial, conta o neto, ela foi casada com o amor de sua vida, Maurice, até se divorciarem. Até aí, nada de mais. Mas Maurice, o Maurice da vovó Nita, era ninguém menos do que Maurice Chevalier, um dos grandes ícones da canção francesa. Ele faz parte do imaginário popular do país, um totem como poucos, apesar das evidências de colaboracionismo — ou conivência — com os nazistas durante a República de Vichy. Além de cantar, Chevalier era excelente ator e humorista. Tornou popular uma frase que depois seria atribuída a ele, mas muito certamente tem origem paisana, joia de ironia francesa: “Envelhecer não é tão ruim assim quando se pensa nas alternativas”. Ele morreu em 1972, aos 83 anos.

Mas será mesmo que o impossível Greg, o jogador que nunca existiu, o admirável mentiroso, teve uma avó casada com Chevalier? E se for mentira? Socorro, Google! Bastaram minutos de pesquisa, enquanto ouvia a gravação do relato de Greg, para descobrir a paixão de Nita Raya e Maurice Chevalier e confirmar o parentesco. Numa das fotos, que ajuda a ilustrar estas páginas, o casal aparece no Egito, diante das pirâmides. Há diversos outros registros. Eles existiram.

A vovó Nita e Maurice Chevalier, no Egito –./Arquivo pessoal

Greg parecia não estar fabulando. Tudo somado, se a possibilidade de um documentário é real, se a avó teve a vida que teve, por que não acreditar no relato do homem que foi parar nas manchetes como farsante? “Nunca fui farsante, não tirei dinheiro de ninguém, paguei tudo do meu próprio bolso”, responde. “Apenas quis provar que todos os sonhos são possíveis e a resiliência é uma das grandes características do ser humano.” Estabelecido o imenso introito, atravessado o que no jornalismo chamamos de nariz de cera, e certo de que o nariz de Greg não crescerá como o de Pinóquio, é hora de contar a história do rapaz, hoje com 39 anos. Era uma vez…

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Era uma vez um menino de pouco mais de 10 anos, no início dos anos 1990, que queria virar jogador de futebol. Via Platini, Zidane no início de carreira, e pretendia ser como eles. Para a idade, ia razoavelmente bem, à revelia dos pais, que o mantinham fora do chão batido, das quadras, dos gramados. Na primeira vez que o pai foi vê-lo em campo, 4 a 0 para o adversário e um desempenho apenas mediano. No carro, depois do silêncio constrangedor e suado, o comentário paterno soou como uma pequena morte: “Senti vergonha de você. Você nunca mais vai jogar futebol, não foi feito para isso”.

Greg foi obrigado a parar de correr atrás de uma bola, pelo menos até os 18 anos. Confessou suas ambições para a avó e, no internato a que fora enviado, começou a subir a ladeira. Batia bola com os amigos, foi melhorando, cresceu. Conseguiu espaço em clubes pequenos, de terceira ou quarta divisões, sem salário nem contrato. Em todos ia apenas medianamente bem como zagueiro central, e terminava excluído. Aos 21 anos, trabalhava numa lanchonete McDonald’s e, por meio de um amigo, conseguiu fazer um teste nas divisões inferiores do PSG. Logo percebeu que não teria futuro e começou a tramar um plano. Era 2003, em um mundo que começava a viver dentro da internet.

Aproveitando o acesso ao Parque dos Príncipes, por jogar na quinta equipe do clube, e com a ajuda de uma amiga, foi à loja do estádio, comprou uma camiseta e nela mandou colocar seu sobrenome, Ackcelrod. Fez uma foto e a guardou. Em casa, abriu o site oficial de Ronaldo, o Fenômeno, então Ronaldinho, e inspirado nele criou seu próprio perfil. Inventou qualidades, escondeu defeitos e nascia ali um craque artificial. Copiou um texto do jornal esportivo L‘Equipe sobre Nicolas Anelka e simplesmente trocou o nome do craque pelo seu. Ficou assim: “O Arsenal da Inglaterra pretende contratar Grégoire Akcelrod, um jovem francês de 17 anos na próxima janela de transferências”. Conseguiu ainda espaço em agremiações menores, mas se aperfeiçoou mesmo em lidar com o blog pessoal e com o CV que começou a distribuir para diversos clubes e agentes. Pedia uma chance.

Grandes esquadrões como o Arsenal e o Chelsea nem responderam, mas conseguiu entrar nas peneiras em Bournemouth e Norwich. Num dos treinos, voou para alcançar uma bola lançada na área e caiu quase desmaiado depois de a pelota lhe atingir em cheio o rosto. Riram. Foi afastado. E seguia na busca eletrônica. Chegou até a rechaçar proposta de um time de Luxemburgo, dizendo ser pequeno demais para suas qualidades. “O CV abria portas, muitos me chamavam mesmo sem pedir vídeos”, lembra. “Foi fácil.”

Insistiu, diz ter passado por dezenove países em cinco continentes, ora levado por agentes que caíram na lorota, ora indo diretamente, na cara e na coragem. Punha a mochila nas costas e se mandava. O destino final era sempre o mesmo: “Você não se encaixa, numa equipe amadora até rolaria, não entre os profissionais”. Mas não baixou a guarda, nunca. Seguiu enviando e­-mails e disparando telefonemas. Até que, em 2006, o CSKA de Sófia, na Bulgária, o chamou. Ofereceram-­lhe, antes mesmo de vê-­lo em ação, um contrato de três anos. Chegou a tirar fotos com a camisa oficial da equipe, que disputaria a fase de grupos da Champions League. Vencera, enfim. Na base de informações falsas, de um currículo evidentemente artificial, chegara ao sonho de infância — graças à vovó Nita, que o ninara depois que o pai o ignorou.

O site de Grégoire Akcelrod –Reprodução/Placar

Mas, então, um torcedor do CSKA, ao conversar em um fórum de fãs, lançou a pergunta que o desmascararia: “Vocês que são torcedores do PSG, conhecem Grégoire Akcelrod? Foi uma boa aquisição?”. Evidentemente, ninguém jamais ouvira falar nele. Rapidamente, o castelo desmoronou, chegou às páginas da imprensa búlgara e, em seguida, às manchetes francesas. Daquele modo: “A incrível farsa de um verdadeiro jogador de futebol falso”.

Ele ainda tentou o Kuwait, a Grécia e o Canadá, mas não vingou. Enganava uns, outros não. Aí parou. Queria provar o quê, além da permanente ideia de buscar os sonhos? “Que a vida é um jogo”, diz. “E que não podemos ter medo de viver.” Hoje, trabalha como agente de jogadores, tenta ajudá-los a seguir a carreira que ele não alcançou. Escreveu um livro — Pro à Tout Prix (Profissional a Todo Custo), no qual narra seu périplo. Acha que sua história rende, sim, o documentário que será feito, mas sabe que pode também servir como denúncia de um modo de gerir o futebol, montado em falsas promessas e dinheiro, muito dinheiro. “Se por ventura um jogador como o Messi se apresentasse sozinho a qualquer clube grande, nunca seria contratado”, diz.

“Mas se tivesse um agente, e todas as partes saíssem ganhando alguma coisa, aí, sim, abriria as portas. É cruel, mas funciona desse modo.” Greg atravessou a vida querendo provar ao pai que aquela frase dita no carro — “Senti vergonha de você” — não o impediria de tocar em frente. Ou, como disse Albert Camus, goleiro na juventude: “Tudo o que eu mais sei sobre a moral e as obrigações dos homens eu devo ao futebol.”

(Texto publicado na edição impressa de PLACAR de fevereiro de 2022)

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