Por que desertores norte-coreanos retornam a um dos regimes mais repressivos do mundo


Ele arriscou a vida fugindo de um dos regimes mais repressivos do mundo, atravessando um trecho militarizado protegido por cercas de arame farpado. Mas um ano depois, ele voltou – pelo mesmo caminho em que saiu.

Após mais de um mês desde que esse homem cruzou a zona desmilitarizada da Coreia do Sul para a Coreia do Norte, grande parte da vida dele em ambos os países permanece um mistério – assim como suas razões para retornar à nação isolada governada por Kim Jong Un.

A mídia sul-coreana informou que o desertor – que não foi nomeado oficialmente, embora outros desertores digam que ele se chamava Kim Woo-jeong na Coreia do Sul – era um ex-ginasta e também muito reservado. De acordo com a polícia sul-coreana, ele era um operário de construção na casa dos 30 anos que ganhava dinheiro fazendo trabalho braçal.

O caso desse homem é raro – enquanto mais de 10 mil desertores norte-coreanos chegaram à Coreia do Sul na última década, apenas 30 voltaram para casa, onde enfrentam a perspectiva de serem colocados em campos de trabalhos forçados, segundo dados oficiais sul-coreanos.

Mas desertores e defensores dizem que mesmo que a justificativa do homem para deixar a Coreia do Sul não seja clara, o fato de alguns desertores norte-coreanos estarem dispostos a retornar a um dos países mais politicamente isolados do mundo apenas destaca o quão desafiadora a vida pode ser no sul para os norte-coreanos.

Por que as pessoas desertam

Desde que a Guerra da Coreia terminou com um armistício em 1953, as Coreias do Norte e do Sul foram separadas por uma fronteira quase impenetrável, impedindo qualquer pessoa de atravessar para o outro lado.

Nas décadas seguintes, a Coreia do Sul se modernizou, tornando-se um dos países mais ricos e tecnologicamente desenvolvidos do mundo. Enquanto isso, a Coreia do Norte tornou-se cada vez mais isolada, com cidadãos sujeitos à pobreza generalizada e liberdades básicas limitadas.

Portanto, não é difícil ver por que algumas pessoas querem fugir.

Desde 1998, mais de 33 mil pessoas desertaram da Coreia do Norte para a Coreia do Sul, de acordo com o Ministério da Unificação da Coreia do Sul. No entanto, os números diminuíram nos últimos anos, depois que Kim impôs controles de fronteira ainda mais rígidos para impedir a disseminação da Covid.

Em raras ocasiões, desertores – como o ex-ginasta – conseguem escapar pela zona desmilitarizada fortemente vigiada que separa a Coreia do Norte da Coreia do Sul. A grande maioria, como o desertor Kang Chun-hyuk, foge pela longa fronteira da Coreia do Norte com a China.

A família de Kang fez a viagem em 1998, quando ele tinha 12 anos, antes de finalmente chegar à Coreia do Sul alguns anos depois.

Na Coreia do Norte, Kang se lembra de não ter comida suficiente para sobreviver.

Às vezes, sua família transformava uma única porção de macarrão seco em uma refeição que alimentaria ele e seus pais por uma semana.

“Não valia a pena ir à escola, então eu e meus colegas roubávamos comida, como milho ou batatas”, disse ele.

De acordo com uma pesquisa feita com 3 mil pessoas divulgada este ano pela Fundação para os Refugiados da Coreia do Norte, a escassez de alimentos é uma das motivações mais comuns para a deserção, com quase 22% dizendo que foi esse o motivo que os desertar. A razão mais comum dada – com 23% – foi que as pessoas não gostavam de ser controladas ou monitoradas pelo regime norte-coreano.

Uma vez que eles chegam à Coreia do Sul, existem medidas para apoiá-los. Os desertores passam por uma sessão de educação obrigatória de 12 semanas para ajudá-los a se adaptar à vida em seu novo lar. Eles recebem auxílio financeiro e acomodação, além do acesso a serviços de saúde e emprego.

Mas mesmo assim, a vida dos desertores é muitas vezes uma luta.

Encontrar trabalho e se encaixar

Antes de Kang Na-ra – que não tem nenhuma relação com Kang Chun-hyuk – desertar em 2014 quando era adolescente, ela achava que sua vida na Coreia do Sul espelharia os K-dramas que ela assistia escondida na cidade norte-coreana de Chongjin.

Mas a Coreia do Sul estava muito longe do mundo romântico que ela vira na tela.

A mãe de Kang Na-ra desertou antes dela – ela não quer dizer por que – mas a vida delas juntas na Coreia do Sul não foi o que ela esperava.

Sua mãe trabalhava longas horas e muitas vezes estava fora de casa dançando e performando com um grupo de desertores norte-coreanos para ganhar dinheiro para sobreviver. Embora Kang Na-ra falasse a mesma língua, ela era solitária e tinha poucos amigos na Coreia do Sul.

Outro desertor, que pediu para não ser identificado por medo de repercussões contra sua família que permanece na Coreia do Norte, disse que também lutou com o choque cultural quando desertou há alguns anos – até mesmo os outdoors brilhantes e coloridos e a abundância do uso de palavras em inglês pelos sul-coreanos o deixaram desconfortável.

“Você não vê coisas assim na Coreia do Norte”, disse. “Eu não gostava de muitas coisas na Coreia do Sul no começo”.

Ele também disse que muitos desertores acharam difícil conseguir um emprego.

Estatísticas de 2020 divulgadas no ano passado pelo Ministério da Unificação da Coreia do Sul mostraram que os desertores tinham uma taxa de desemprego mais alta do que a população em geral, com 9,4% dos desertores desempregados, em comparação com 4% da população geral em dezembro de 2020.

“Conseguir um bom emprego é importante, mas mesmo os sul-coreanos que são criados e educados aqui acham difícil conseguir um emprego decente”, disse ele. “Você pode então imaginar o quão difícil pode ser para os desertores norte-coreanos”.

A família de Kang Chun-hyuk recebeu um apartamento do governo quando chegou à Coreia do Sul em 2001, após passar três anos na China. Mas seu forte sotaque norte-coreano tornou difícil para ele se encaixar na escola e ele desistiu de estudar. Se empregou em trabalhos braçais até os 25 anos, sem saber se seria capaz de fazer outra coisa.

Para outros, a luta para se ajustar e encontrar trabalho pode ter consequências mortais. Em 2019, a desertora norte-coreana Han Sang-ok foi encontrada morta em seu apartamento com seu filho de 6 anos depois de não pagar as contas por meses.

Um funcionário que media o hidrômetro notou um mau cheiro vindo do apartamento e chamou a polícia, que encontrou dois corpos em decomposição e uma geladeira vazia, levando o policial a apontar a fome como a causa suspeita da morte.

Dores da separação

Mas nem todos os desertores sonham com uma vida brilhante na Coreia do Sul.

A desertora Kim Ryon-hui é um caso raro que chegou no país quase por acidente.

A mulher de 54 anos, que viveu uma vida relativamente luxuosa na Coreia do Norte, foi à China em 2011 para visitar parentes e procurar atendimento médico para doenças do fígado. Mas quando ela chegou, ela descobriu que os médicos chineses queriam o pagamento adiantado.

Kim Ryon-hui quer desesperadamente voltar para a Coreia do Norte / Charlie Miller/CNN

Kim contou que um agente disse a ela que o povo chinês costumava ir à Coreia do Sul para ganhar dinheiro. Então, ela se inscreveu para uma viagem à Coreia do Sul e deixou seu passaporte norte-coreano com o grupo de agentes – sem perceber que isso significava que ela não poderia mais voltar para casa.

Kim sente hostilidade dos sul-coreanos, especialmente quando o líder da Coreia do Norte dispara mísseis. Ela disse à CNN que lutou para se adaptar a uma sociedade capitalista governada pelas pressões do mercado e para entender o que, na visão dela, é um mundo cão.

“É como se fôssemos óleo e a Coreia do Sul fosse água, então não podemos nos misturar”, disse ela.

Esse é um sentimento comum para desertores. De acordo com a pesquisa da North Korean Refugees Foundation, enquanto a maioria das pessoas está feliz na Coreia do Sul porque pode viver uma vida livre e ganhar em relação ao quanto trabalha, muitas estão descontentes com o nível de competição intensa.

Mas a parte mais difícil para Kim é a separação dela e da família. A lei sul-coreana impede qualquer comunicação com pessoas na Coreia do Norte e os sul-coreanos não podem viajar para lá. A menos que Kim volte para a Coreia do Norte, ou as duas Coreias cheguem a um acordo de paz, ela tem poucas chances de ver sua família novamente.

Kim viu a filha pela última vez quando ela tinha 17 anos – agora ela tem 28. Kim só consegue se comunicar com sua família através de jornalistas que levam cartas e presentes para ela na Coreia do Norte, mas isso não é possível desde que o país fechou as fronteiras devido à pandemia de Covid-19 em 2020.

“É assustador estar sozinha”, disse ela. “Quando vejo luzes acesas em outros apartamentos à noite, imagino as famílias jantando juntas. Esse é o sentimento mais triste e solitário.”

Por que os desertores retornam

Apesar das dificuldades de estar na Coreia do Sul, a grande maioria permanece. Para eles, isso ocorre porque os benefícios de permanecer na Coreia do Sul são muito maiores do que os riscos que eles enfrentam se retornarem.

Seo Jae-pyeong, o diretor da Associação dos Desertores da Coreia do Norte, desertou em 2001. Nos 20 anos em que viveu na Coreia do Sul, ele só conheceu pessoalmente uma desertora que retornou à Coreia do Norte.

Ela era médica e tinha família na Coreia do Norte e não sabia que seu irmão a estava trazendo para a Coreia do Sul, explicou.

“Ela não tinha motivos para desertar e não conseguia se acostumar com a vida na Coreia do Sul”, disse Seo.

Ele questionou quantos dos 30 desertores que retornaram à Coreia do Norte partiram por vontade própria. Ele disse que alguns podem ter sido chantageados ou sequestrados perto da fronteira entre a China e a Coreia do Norte.

Outros podem ter tido grandes dificuldades financeiras que os deixaram com poucas outras opções.

Lee Na-kyung, desertora e ativista para pais solteiros e pessoas com deficiência do Norte, disse que quando muitos desertores chegam à Coreia do Sul já têm grandes dívidas com agentes que os ajudaram a cruzar a fronteira.

Alguns desertores entregam aos corretores o dinheiro que recebem de auxílio do governo e depois se endividam ainda mais, enquanto lutam para encontrar trabalho, explica Lee, que desertou da Coreia do Norte em 2005, depois que seu marido foi acusado de um crime que ela diz que ele não cometeu.

Para alguns, as dificuldades da vida na Coreia do Sul não atendem às suas expectativas. Ela conhece um homem que era um oficial militar do alto escalão na Coreia do Norte que só conseguia encontrar trabalho em um ferro-velho na Coreia do Sul. “Ele disse que preferia morrer em casa do que morrer como um lixeiro”, disse ela.

E depois?

Um mês depois que o ginasta Kim voltou para a Coreia do Norte, não está claro se ele ainda está vivo.

Embora os militares sul-coreanos o tenham visto em câmeras de segurança cruzando a cerca de arames farpados para a zona desmilitarizada, eles não conseguiram detê-lo, disse o chefe do Estado-Maior Conjunto dos militares sul-coreanos, Won In-choul, em um relatório em janeiro.

Ele foi visto quatro vezes em câmeras de segurança no lado sul da fronteira, e uma vez depois de cruzar a Linha de Demarcação Militar.

Em certo momento, os soldados o confundiram com um desertor vindo do Norte. Em outro momento, eles foram procurá-lo. Mais tarde, eles não encontraram nenhum vestígio dele, exceto uma pena presa em um dos fios que eles suspeitavam ter saído da jaqueta do homem.

Não houve “movimentos incomuns” dos militares norte-coreanos sobre o incidente, disse o porta-voz do Ministério da Defesa da Coreia do Sul, Boo Seung-chan, no mês passado em outro relatório.

E embora a mídia estatal norte-coreana tenha se gabado com o retorno de antigos desertores para casa, não houve menção ao desertor do mês passado nas publicações de notícias estatais.

Para aqueles na Coreia do Sul, isso é um lembrete de que as políticas do país para ajudar os desertores ainda podem ser melhoradas. Na semana passada, o governo sul-coreano anunciou que estava lançando uma nova equipe para melhorar a segurança dos desertores, observando que, apesar de seus esforços atuais, alguns desertores ainda estavam “enfrentando dificuldades para se estabelecer em nossa sociedade”.

Mas os defensores dos desertores têm dúvidas sobre a eficácia dessas novas medidas, apontando que as medidas de apoio que estão em vigor simplesmente não funcionam.

Mesmo os desertores que parecem ter feito uma transição com sucesso, às vezes lutam com a possibilidade de retorno para a Coreia do Norte.

Dois anos depois de desertar, Kang Na-ra disse à mãe que queria voltar. Mas ela não queria arriscar a vida depois de passar por tanta coisa para chegar à Coreia do Sul.

Agora Kang, com 25 anos, é uma personalidade da televisão e YouTuber com mais de 300 mil seguidores que assistem seus clipes sobre a vida na Coreia do Norte. Sua renda é instável, mas pelo menos ela está aproveitando a vida.

“Ainda hoje, me pergunto se tomei a decisão certa”, disse ela. “A vida aqui é dura”.

Saeeun Park e Seoyeon Youn, de Seul, na Coreia do Sul, contribuíram para este artigo.

Este conteúdo foi originalmente publicado em Por que desertores norte-coreanos retornam a um dos regimes mais repressivos do mundo no site CNN Brasil.