A Semana de 22 foi um evento majoritariamente integrado por homens, assim como o Modernismo de uma maneira geral. Reflexo da sociedade de uma época – mas não muito diferente do que acontece nos dias de hoje, 100 anos depois.
Em fevereiro de 1922, no Theatro Municipal de São Paulo, a arte de vanguarda ganhava destaque através das obras de uma geração que buscava o novo e rompia com a tradição. Havia escritores, artistas visuais e plásticos, músicos e dançarinos.
Sem conseguir repercussão nem cobertura da imprensa na ocasião, a exposição foi revisitada, analisada e reverenciada décadas depois, em diferentes momentos, colocando em evidência modernistas que estiveram lá, como Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Victor Brecheret, Heitor Villa-Lobos, Sérgio Milliet, Guilherme de Almeida, Di Cavalcanti e Anita Malfatti, entre outros.
Em meio a esse grupo formado em grande parte por homens, Anita Malfatti é a artista mulher que mais teve visibilidade como participante da Semana. Figura importante para o movimento, Anita não foi a única. Mesmo em número menor em relação aos homens, outras mulheres também fizeram parte do histórico evento.
“As mulheres tinham muito pouco espaço”, conta Regina Teixeira de Barros, doutora em Estética e História da Arte pela USP, em entrevista à CNN.
Elas, entretanto, tiveram presença marcante. “Não obstante a conhecida foto de dezesseis homens, com Oswald de Andrade sentado no chão à frente, o sucesso da Semana dependia sobretudo da presença de três mulheres, as pianistas Guiomar Novaes e Lucília Villa-Lobos e a pintora Anita Malfatti”, escreve Kenneth David Jackson, professor de literatura luso-brasileira na Yale University, em seu ensaio “As Molduras do Modernismo”, que integra o livro “Modernismos: 1922-2022”, lançado pela Companhia das Letras. Com 29 textos, de diferentes autores, o livro é organizado por Gênese Andrade, com consultoria de Jorge Schwartz.
Além delas, passaram também pelo palco do Municipal a violinista Paulina d’Ambrósio e a bailarina Yvonne Daumerie. No entanto, não houve a participação de escritoras no evento. Por quê? “Elas abordavam temas importantes, ousados, mas não usavam a linguagem modernista”, explica Gênese Andrade, especialista em Modernismo e em Oswald de Andrade, à CNN.
No livro, Maria de Lourdes Eleutério, doutora em Sociologia pela USP, se aprofunda no tema no ensaio “Elas Eram Muito Modernas”. “Elas estavam escrevendo e eram mulheres à frente do seu tempo no sentido de que, naquela época, ser escritora não era muito bem visto”, continua Gênese.
Aproveite para ouvir o episódio “Mulheres modernistas”, da série de podcasts da CNN sobre a Semana de Arte Moderna de 1922:
Entre as pintoras, além de Anita Malfatti, Regina Teixeira de Barros relembra de Zina Aita e Regina Gomide Graz em seu ensaio “As Mulheres Na Semana de 22 e Depois”, também presente no livro.
A pintora, ceramista e desenhista Zina Aita nasceu em Belo Horizonte e se formou em Florença, na Itália, onde ficou entre 1914 e 1918.
“Nesse momento, tem um movimento tanto na Suíça quanto na Itália – acho que na Europa de uma forma geral – de modernização, de uma nova sociedade. E esse movimento de renovação acontece muito através do que chamaríamos hoje de decoração, tanto de painéis em restaurantes, de fachadas de cinemas, desde a coisa mais pública até uma situação mais doméstica”, afirma Regina, que é especialista em arte moderna. “A Zina estudou em Florença com um professor que é um dos papas dessa renovação.”
De volta ao Brasil, em 1920, ela expôs em Belo Horizonte e depois no Rio, onde um pequeno núcleo de intelectuais interessado na modernização das linguagens viu sua exposição e a chamou para o evento em São Paulo, explica Regina.
“Temos muito pouca referência do que ela teria mostrado. Conhecemos pouquíssimas peças dela, pouquíssimas pinturas, alguma coisa de nanquim, alguma coisa de desenho”, diz. “Sabemos que ela manteve contato com a Anita Malfatti, foi para Nápoles visitá-la e então se tornaram próximas, mas não conhecemos a produção dela. Então, é muito difícil falar para além dessa uma ou duas pinturas que conhecemos. Mas certamente deve ter sido uma mulher interessante, porque se não, ela não teria sido convidada pelos cariocas para participar da Semana.”
Sobre a pintora e decoradora Regina Gomide, casada com o suíço John Graz, Regina Teixeira de Barros afirma que a participação dela na Semana de 22 não é algo certo. O nome dela não consta no catálogo da exposição e, como a imprensa não cobriu o evento, não é possível confirmar a informação em reportagens. No entanto, há um indício importante.
“No esboço da localização de cada artista no saguão, realizado em 1969 por Yan de Almeida Prado a pedido da historiadora da arte Aracy Amaral, os nomes de Regina e seu marido John Graz estão localizados à esquerda de Anita, que por sua vez ocupa um lugar privilegiado, tanto física como simbolicamente: a entrada principal do Theatro”, descreve Regina em seu ensaio.
Segundo ela, Regina Gomide foi uma figura importante no Modernismo “e, de certa maneira, apagada ou entendida como colaboradora do marido”. A artista trabalhava com tapetes e artes aplicadas de uma forma geral.
“Ela trabalhava com têxteis, e muitas vezes as pessoas diziam que desenho era do John e que Regina executava. Podia ser que sim, mas também tinham desenhos dela. Como se o John fosse a cabeça e a Regina fizesse a parte manual. Acho que é bastante complicado pensar assim.”
Estrelas do Modernismo
Uma das estrelas da Semana de Arte Moderna, Anita Malfatti já chamava a atenção desde sua exposição de 1917, em São Paulo, tida como marco na história da arte moderna no Brasil e abrindo caminho para a Semana de 22.
A mostra foi alvo de uma crítica ferrenha do escritor Monteiro Lobato publicada no jornal “O Estado de S. Paulo”. “A polêmica com o Lobato, de certa maneira, deu muito destaque para Anita”, comenta Regina.
“Lendo com calma a crítica do Lobato, você vê que ele diz que a Anita é uma pessoa muito talentosa, que está perdida porque caiu nesses ‘ismos’ que ele odiava. Aí ele mete o pau no Modernismo de uma forma geral. Mas se não reconhecesse nela uma grande pintora, ele não se daria ao trabalho de escrever. Reconhece nela uma grande força. Ele inclusive compara – vários comparam – a pintura dela a uma ‘pintura masculina’. Não é uma pintura delicada, é bem contundente”, completa ela. Tipo de adjetivação, aliás, que hoje é considerado machista.
Na época, Oswald de Andrade saiu em defesa de Anita. Mário de Andrade se tornou um dos admiradores de sua obra. Mário e Anita tornaram-se amigos, mas ele não poupou críticas à artista depois que ela viajou para Paris, em 1923, e foi influenciada pelo o que seus contemporâneos estavam fazendo ali naquele período: uma pintura moderna, mas olhando muito mais para a tradição.
Mário queria que ela continuasse a produzir trabalhos na linha do quadro “O Homem Amarelo”, que integrou a exposição de 1917 e também a Semana de 22.
“O que os modernistas acabaram fazendo foi usar a Anita como estandarte, como se ela fosse uma mártir do Modernismo. Muitas vezes, o Mário escreveu sobre ela como mártir. A ideia de uma mulher frágil que ousou, que ultrapassou os limites. Então, a mudança na pintura dela, o fato de eles não compreenderem os novos momentos da pintura da Anita fazem com que ela sirva muito bem a esse papel de pioneira e de mártir”, diz Regina.
Anita teve um papel também importante na ponte que fez entre Tarsila do Amaral, de quem era próxima, e os modernistas. Durante a Semana de 22, Tarsila não estava no Brasil. “Tarsila foi e ainda é uma figura fundamental para esse Modernismo”, observa Regina, sobre a autora de obras emblemáticas como “Abaporu” e “Operários”.
“Mas acho que ela consegue isso muito graças ao convívio dela e de Oswald (os dois foram casados) com o Blaise Cendrars, um poeta franco-suíço que mostrou tanto para o Oswald quanto para a Tarsila e para o próprio Mário, o que é Brasil: olhar o povo, a cidade, o cartaz, os temas cotidianos. De fazer poesia com os temas cotidianos, de pintar temas cotidianos.”
A escritora e jornalista Patrícia Galvão, a Pagu, também não participou da Semana de 22 – mesmo porque, na época, ela tinha apenas 12 anos –, mas deixou sua marca no Modernismo brasileiro. Mais especificamente na segunda fase do movimento.
“Em 1929, ela publicou desenhos na ‘Revista de Antropofagia’ e, em 1933, o romance ‘Parque Industrial’. Depois, partiu para militância (no Partido Comunista) e só voltou a publicar nos anos 1940, mas, na época, ela não estava mais com Oswald de Andrade (que se separou de Tarsila para ficar com ela). Estava com Geraldo Ferraz”, comenta Gênese Andrade.
Passaram-se décadas, e os modernistas continuam influenciando. A cantora e compositora Adriana Calcanhotto lembra como “Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade” a impactou. “Eu escolhi o livro na revista do Círculo do Livro, sem saber do que se tratava. Chegou junto a uns quatro ou cinco outros, não tinha nenhuma expectativa especial. Foi uma descoberta só comparável com o que me causou ‘A mulher que matou os peixes’, de Clarice Lispector quando eu tinha sete anos”, conta ela, à CNN.
Em 1987, Adriana estreou o show “A Mulher do Pau Brasil”, em Porto Alegre, sob o efeito de “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, de Oswald de Andrade, “O Rei da Vela”, tropicalismo – a apresentação foi resgatada por ela e ganhou nova versão recentemente.
Das mulheres modernistas, Tarsila do Amaral é uma de suas influências até hoje. Adriana conta que descobriu a artista a partir do livro do Oswald, se apaixonou por seu trabalho e passou a ler tudo sobre ela.
“Ela continua influenciando a mim, sim. É inspiração no sentido de reinventar-se e à própria arte. Fazem muitas críticas a ela, uma compara os quadros ‘A negra’ e seu autorretrato. Eu acho que o autorretrato é uma tela muito inferior à ‘A negra’ em termos de modernismo, como pintura, como obra de arte. Respeito o argumento das mulheres negras que se veem retratadas de forma animalesca na tela”, analisa a compositora.
“O bom de celebrar o centenário é poder discutir a ideia de identidade nacional e rever os silenciamentos. Só agora, quando os artistas negros e indígenas deixaram de ser matéria-prima e viraram vozes artísticas, é que eu acho que podemos tentar falar de nação. Acho incrível a devoração do modernismo que os artistas indígenas fizeram e estão fazendo.”
Este conteúdo foi originalmente publicado em Violinistas, dançarinas, pintoras: as mulheres e a Semana de 22 no site CNN Brasil.