“Monstrumento”, “Padre Cícero paulista”… Não foram poucos os apelidos dados à estátua mais odiada de São Paulo: a imensa figura do Borba Gato, na Avenida Santo Amaro. Em 1963, quando foi inaugurada, as críticas diziam respeito à estética. A obra teria traços grosseiros, semelhantes às peças de barro da arte popular. Seus 13 metros de altura lhe dariam o aspecto de um “bonecão”, sem parentesco com monumentos sofisticados de grandes artistas, espalhados pela cidade. À época, seu escultor, Júlio Guerra, defendeu-se das críticas dizendo que procurou “fazer uma estátua que alcançasse o povo”. Mas reconheceu: “talvez não seja uma obra de arte”.
Quase 60 anos depois, em julho de 2021, integrantes do coletivo Revolução Periférica colocaram fogo na estátua. Mas não porque fosse feia, e sim pelo personagem que ela exalta: um bandeirante, tipo de sertanista do período colonial, “caçador” de pedras preciosas, e que nessa procura por riquezas minerais contribuiu para desbravar caminhos e para a expansão territorial do Brasil. Só que, para isso, escravizava indígenas, aproveitando para estuprar suas prisioneiras, além de exterminar quilombos.
Executores de atrocidades como essas, claro, não merecem homenagem nenhuma. Mas não era assim que pensavam os grandes nomes da Semana de Arte Moderna, a “Semana de 22”, que completa 100 anos agora em fevereiro. Não à toa, uma das obras mais conhecidas de um modernista é o chamado “Monumento às Bandeiras”, de Victor Brecheret, escultor que teve trabalhos seus expostos no Theatro Municipal de São Paulo durante a Semana que foi o grande acontecimento artístico da época.
Esse monumento, cuja inauguração ao lado do Parque do Ibirapuera, em 1953, fez parte das comemorações do 4º Centenário da cidade, também não escapou do vandalismo em diversas ocasiões. Suas figuras já ganharam baldes de tinta vermelha, representando sangue, e também a seguinte pichação: “bandeirantes assassinos”. Não há dúvida da natureza do protesto.
Um novo mito fundador da nação
Voltando a 1922, ano em que se comemorava outro centenário, o da Independência do Brasil, os setores mais intelectualizados da elite paulistana quiseram, na época, estender para o campo cultural e histórico a influência que São Paulo já exercia na política e na economia brasileira. Era uma nova potência nacional, graças à fortuna que vinha da plantação e exportação de café – e à industrialização que foi consequência desse comércio de grãos.
Na área da cultura, o esforço culminou na Semana de 22, distinguindo a arte moderna centralizada em São Paulo do “passadismo” da tradição artística que ainda vigorava no Rio de Janeiro (então capital do Brasil). Já no campo histórico, a ideia foi fazer uma releitura do papel dos bandeirantes como heróis da nação.
“A promoção do mito dos bandeirantes, transformados em homens idealistas e empreendedores, a desbravar sertões, escavar riquezas e expandir fronteiras, foi o caminho que São Paulo encontrou para religar geografia e história”, aponta Marcos Augusto Gonçalves, autor de 1922 – A semana que não terminou.
O vigor e a bravura desses exploradores de pouca ou nenhuma educação, a maioria descendentes da primeira e segunda geração de portugueses em São Paulo – alguns, filhos de europeus com índios, que mal dominavam nossa língua –, seriam, nessa releitura, fatores-chave da consolidação do Brasil como nação continental.
A depender dessa elite cafeeira, a história do país incorporaria os mitos fundadores de sua nova metrópole. E contribuía para essa perspectiva o relato de que “o grito” de independência aconteceu às margens do Rio Ipiranga.
Desvairados
Os artistas modernistas compraram essa ideia. Em sua ostentação de ruptura com a imobilidade da arte brasileira, viam na coragem e no vanguardismo dos bandeirantes um espelho no qual apreciavam suas próprias pinceladas e seus versos.
Em sua palestra na Semana de Arte Moderna, o escritor Menotti del Picchia deixou clara essa associação: “Queremos escrever com sangue – que é humanidade; com eletricidade – que é movimento, expressão dinâmica do século; com violência, que é energia bandeirante”.
Uma das obras icônicas desses primeiros modernistas, o livro de poemas Pauliceia Desvairada, de Mário de Andrade, não deixa de fora analogias com o arrojo daqueles super-homens de séculos anteriores. “Heroico sucessor da raça heril dos bandeirantes / Passa galhardo um filho de imigrante / Louramente domando um automóvel.”
Quando, quatro meses antes da Semana de Arte Moderna, Mário e Oswald de Andrade viajaram ao Rio de Janeiro para conhecer outro poeta de estilo modernista, o pernambucano Manuel Bandeira, um artigo no Correio Paulistano associou os dois paulistanos a bandeirantes indo desbravar os sertões primitivos das artes e da literatura nacional – ainda que, naquele início da década de 1920, o Rio continuasse a ser o principal centro urbano do país, com um mercado cultural desenvolvido. Aliás, uma das maiores atrações da Semana modernista de São Paulo foi um carioca: o compositor e maestro Heitor Villa-Lobos.
Inspiração fascista
Exaltar assassinos de índios e negros não é o único esqueleto no armário dos modernistas de 22. A inspiração de substituir a arte do passado, de temas bucólicos, por outra, que versava sobre velocidade e tecnologia, vinha em grande parte de Filippo Tommaso Marinetti, líder do movimento futurista.
“Até hoje, a literatura tem exaltado a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono”, dizia o italiano em um manifesto de 1909. “Queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, a velocidade, o salto-mortal, a bofetada e o murro.”
Como lembra Marcos Augusto Gonçalves, o efeito da vanguarda de Marinetti foi explosivo. “Na literatura, os futuristas lançaram o brado de ‘liberdade para as palavras’, sugerindo a exploração do design tipográfico da época, da linguagem publicitária e da escrita fragmentada.” Essa escrita fragmentada, para ficar num único exemplo, marcaria os textos de Mário e Oswald de Andrade. “A expressão ‘futurismo’ resumia um sentimento de época, e incendiou a imaginação de artistas e escritores dentro e fora da Europa”, explica Gonçalves em seu livro.
Marinetti, que glorificava a guerra como “única higiene do mundo”, foi um militante apaixonado do fascismo e chegou a afirmar que essa ideologia representava uma extensão natural do pensamento futurista.
A adesão às ideias do italiano por nossos modernos foi claramente estética, e pouco política. Mas a associação entre esses dois campos, afirmada pelo próprio Marinetti, não seria tão inofensiva assim. No Brasil, os modernistas eram frequentemente chamados pela imprensa de “futuristas”, e uma figura bastante presente nos bastidores da Semana de Arte Moderna foi Plínio Salgado. Com seu bigodinho à la Hitler, esse paulista de São Bento do Sapucaí fracassou como poeta, mas entraria para nossa história fundando a Ação Integralista Brasileira, partido conservador de extrema-direita inspirado no fascismo italiano – aliado do nazismo na Segunda Guerra Mundial.