“Se você quiser amar, se você quiser amor/ Vem comigo a Salvador para ouvir Iemanjá”, cantou Vinicius de Moraes. “Quem é que já viu a Rainha do Mar?”, perguntou Maria Bethânia. “Um dia ela ainda aparece / É a rainha do mar”, respondeu Dorival Caymmi.
Independente do credo ou religião, é raro encontrar algum brasileiro que nunca tenha ouvido falar em Iemanjá, orixá cultuada nas religiões de matriz africana, padroeira dos pescadores e considerada rainha do mar.
Ela está presente na música, nas telenovelas, no cinema, na literatura, nas fantasias de Carnaval e agora (desde 2020) também no Diário Oficial da prefeitura de Salvador, quando a Festa de Iemanjá tornou-se oficialmente Patrimônio Cultural.
“A característica dessa festa é importante para garantir também o ofício de pescador artesanal de geração para geração, preservar a Casa de Iemanjá e a fé que nela envolve. Este é o festejo mais afetivo de Salvador – e falo enquanto folião, não como gestor cultural”, explica Fernando Guerreiro, presidente da Fundação Gregório de Mattos, instituição responsável pelo Plano de Salvaguarda do evento que ocorre todo o ano no dia 2 de fevereiro desde 1923.
“A Festa de Iemanjá é a única que se manteve como o nome em iorubá [idioma de grupos étnicos da África Ocidental]. Não tem sincretismo religioso como acontece com outras festas, como a do Senhor do Bonfim e Santa Bárbara, por exemplo”, explica Guerreiro. Em iorubá, Bonfim corresponderia a Oxalá e Santa Bárbara a Iansã.
A Bahia é o local com maior concentração de terreiros de candomblé e umbanda no Brasil. Segundo dados da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro Ameríndia (AFA), estão registrados 1.730 terreiros apenas em Salvador, sendo 9 mil em todo o estado – incluindo todas as tradições, como Umbanda, Ketu, Jêje, Angola, Ijexá, Jarê, Egungun, Caboclo, entre outras.
“Manter o nome em iorubá não foi um ato de resistência, foi de justiça. Não existe data assim no calendário cristão, não tinha motivo mudá-lo”, explica o presidente da AFA, Leonel Monteiro Novi Nukundeji do terreiro Xwe Vodun Zo e Ogan de Osanìyn da Casa Oxumarê.
Segundo o último levantamento do IBGE, realizado em 2010, 65% da população baiana se diz católica – embora estudiosos acreditem que há uma subnotificação dentro dessa porcentagem, uma vez que frequentadores de religiões de matriz africana, por conta da intolerância religiosa, se dizem católicos.
A pesquisa também mostra outro movimento: Salvador está na quarta posição no ranking de capitais brasileiras com o maior crescimento de fiéis evangélicos.
“Aqui em Salvador é assim mesmo, minha amiga. Mistura tudo”, explica Nilo Ferreira, pescador há mais de 35 anos e integrante da Colônia de Pescadores do Rio Vermelho.
“A pesca de linha, artesanal, não tá muito boa. No mar tem muita poluição, muito desequilíbrio ambiental e aqui [na terra] o pescador também não teve nenhum benefício, nenhum auxílio nesta pandemia. Não tenho religião, não, mas participo todos os anos.”
Atotô: o impacto da Covid
O evento, “tradicional e afetivo”, que “lembra as festas de bairro” como definiu Guerreiro, costuma movimentar milhões de pessoas, segundo a Saltur. O número é diluído com pequenos fluxos de 5 mil pessoas desde a madrugada do dia 1º até a tarde do dia 2 de fevereiro. Momentos cruciais da festa, como a saída do presente por exemplo, podem dobrar essa estimativa e concentrar 10 mil pessoas num mesmo pólo.
Com o atual cenário, o badalo da festa se faz inviável. Segundo a Secretaria de Saúde do Estado (Sesab) até o final de janeiro, pacientes com coronavírus eram responsáveis por 65% da ocupação dos leitos no estado e 79% da ocupação em Salvador.
Na última quinta-feira (27), durante a entrega de uma obra pública, o prefeito de Salvador, Bruno Reis (DEM), declarou a suspensão da folia da festa pelo segundo ano consecutivo. Foi proibido qualquer tipo de emissão sonora em todo o trecho da Avenida Oceânica e comércio ambulante.
“O apelo que fazemos é que Salvador possui mais de 60km de orla, então quem quer mandar seu presente para Iemanjá pode fazer em qualquer lugar da cidade, que Iemanjá vai receber a oferenda”, disse o prefeito durante uma entrega de obra pública.
Os terreiros não só concordaram com a medida, como a endossaram. “Há uma tradição de festas populares e qualquer coisinha aqui em Salvador gera aglomeração. Não foi uma ‘imposição’ da prefeitura, mas também uma posição dos terreiros. Não faz sentido pressionar sistema de saúde e funerário. Isso vai contra a nossa espiritualidade, que é agir com cuidado em relação à pandemia”, explicou o presidente da AFA.
A saída encontrada foi manter os ritos religiosos, porém sem a “balada” de Iemanjá. Embora a prefeitura tenha colocado tapumes para impedir a entrada de pessoas ao local, centenas se reuniram na orla do Rio Vermelho para admirar a entrega.
“Eu não vim ano passado, mas gostei do que vi neste ano. Achei a festa muito mais religiosa. A festa aberta era muito linda, mas me incomodava essa mistura do sagrado com o profano, de som alto, gente bebendo, esse tipo de coisa”, diz a paulista Renata Sampaio, gerente de canais de uma multinacional, que frequenta a festa há mais de quatro anos.
Xirê: o movimento na economia
O verão da capital baiana (que começa em dezembro e termina em fevereiro) movimenta em torno de R$ 1,5 bilhão, segundo a Saltur. A festa de Iemanjá é o quarto evento da cidade, perdendo apenas para o Carnaval, ano novo e lavagem do Bonfim, respectivamente.
A festa em homenagem à Rainha do Mar tem um fluxo de mais de um milhão de pessoas, são aproximadamente 5 mil pessoas por hora com picos de 10 mil, como na entrega do presente, por exemplo.
“Não conseguimos mensurar exatamente o impacto, mas é nítido que houve. Mesmo assim ficamos felizes com a retomada que estamos tendo”, explica Isaac Chaves Edington, presente da Saltur.
Dos 35 setores que movimentam a economia de Salvador no verão, o setor de eventos é o que está sentindo maior dificuldade em sua retomada. Para pressionar o poder público, produtores culturais publicaram no dia 22 de janeiro em suas redes sociais a campanha “Pega Leve Rui Costa”, para chamar a atenção do governador do Estado (PT).
“Em um evento de 5 mil pessoas, são gerados mais de 500 empregos temporários. Cancelar um evento de médio porte é tirar a renda de muitas famílias”, dizia o comunicado, que termina com o ultimato: “Estamos chegando no limite, e sem o apoio do governo fica quase impossível aguentar”.
Já o setor hoteleiro teve de se virar inventando atrativos para seus hóspedes. Como muitos pontos turísticos estão fechados ou contam com restrições, a saída do Fera Hotel, por exemplo, foi apostar em implementar a experiência dos serviços internos. Para o dia de Iemanjá, colocaram um balaio com rosas e decoração azul e branco na área da piscina para que hóspedes possam escrever os seus desejos e agradecimentos sem precisar, necessariamente, sair da instalação.
“Nós nos comprometemos em levar apenas os desejos. Optamos por não levar o balaio justamente para não gerar mais sujeira nas águas”, explica Tereza Pires, gerente de receitas e vendas do Fera Hotel.
Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis (ABIH), a taxa de ocupação era de 78,26% no mês de fevereiro em 2019. Em 2021, o número caiu para 54,25% no mesmo mês. “Durante o ano de 2020 ficamos fechados por nove meses. Reabrimos o hotel em dezembro apenas” relembra Tereza.
“Comparando os resultados de 2019 com 2021. Tivemos um crescimento de 63% no preço das diárias média e uma queda de 51% na taxa de ocupação. Nosso desafio para este ano é um crescer em 100% na taxa de ocupação comparado com o resultado de do ano passado.”
Ora iê iê ô: a festa antes da festa
Embora o festejo seja conhecido como Festa de Iemanjá, na madrugada do dia 1 para o dia 2 outra orixá é presenteada: Oxum, a rainha da água doce.
Segundo a filosofia iorubá, Oxum é filha de Iemanjá e Oxalá, portanto saudar a “rainha da água doce” antes de saudar a “rainha do mar” significa dar o “combustível” necessário para qualquer navegante poder navegar: água de beber. A água potável, além de hidratar os navegantes, também é responsável por “acalmar” os corações mais aflitos antes de encarar as intempéries marítimas.
Balaios são feitos de acordo com o que manda a espiritualidade (e o bolso) de cada um e entregues na bacia de Oxum, no Dique do Itororó, um açude natural de Salvador de água doce.
A bacia de Oxum está localizada num determinado ponto do rio e não, necessariamente, a localização de sua estátua. “Aquilo lá é só coisa para turista”, explica Germano Cruz. Na madrugada, o músico que estava “quebrando um galho” como caixa dos marinheiros que levavam os fiéis à bacia de Oxum.
O funcionário público Daniel Souza saiu de Feira de Santana para vir fazer uma entrega pela primeira vez no Dique. “Precisava agradecer algumas realizações pessoais que ainda estão para acontecer este ano”, diz o homem em tom esperançoso vestido de branco.
Para chegar ao lugar que está a bacia de Oxum, Souza teve de fazer um Pix de R$ 150. O preço foi pequeno em relação a outras viagens, que podem variar de R$ 300 a R$ 500. A diferença de preço é feito de acordo com o tamanho das oferendas e capacidade (pais de santo, por exemplo, levam em torno de 10 pessoas).
“Sou músico e a pandemia ferrou demais a minha classe. Aproveito essas festas para divulgar o meu trabalho, vender umas camisetas e ajudar meus amigos que trabalham por aqui”, diz Germano Cruz. Segundo um levantamento não-oficial, Cruz acredita que são feitas cerca de 20 viagens durante a madrugada – todas em um barco a remo.
A entrega do presente a Oxum pode ser bem menos turística e badalada que a Festa de Iemanjá, não falta música e fartura. Cerca de oito mesas de plásticos, enfileiradas na calçada, precisam dar conta do tanto de comida, como abará, vatapá, arroz branco, feijão fradinho, bolos e, claro, a decoração exuberante – uma vez que uma das características de Oxum é justamente a vaidade.
“Frequento aqui há 12 anos. Percebi que o povo vinha, mas não tinha o que comer”, explica Tia Lu, doceira que faz as vezes de cantora e vice-versa. E, claro, fã de Oxum. “Sim, porque não sou do candomblé, nem da umbanda. Mas acho a festa muito bonita, então pedi para que amigos e pais de santo me orientarem para preparar o que ela mais gosta”, diz. Tudo é entregue totalmente de graça aos frequentadores, independente do credo.
Odoyá: a Festa de Iemanjá
Reza a lenda que um grupo de 25 pescadores resolveu oferecer presentes para a “mãe das águas” para que ela pudesse resolver o problema de escassez de peixes que assolou a região em 1923. “Eles pediram fartura e mar tranquilo. Iemanjá atendeu e desde então a Colônia de Pescadores e o povo baiano a presenteia”, explica Fernando Guerreiro.
O pai de santo responsável por fazer as entregas deste 2020 é o Babalorixá Pai Ducho d Ogum, que foi escolhido pela Colônia de Pescadores graças ao convívio intenso com a Mãe Aíce de Oxóssi, que preparou o presente por vinte anos e morreu em 2017 de causas naturais.
“Foi um aprendizado ter convivido com ela. Sinto muito a sua falta, mas também me sinto muito bem preparado pro que eu tô fazendo”, conta o pai de santo. Ele contou com a ajuda de 20 pessoas escolhidas pela espiritualidade do terreiro Ilê Axé Awa Negy.
Normalmente o presente costuma sair no período da tarde, por volta das 16 horas. Ele é levado pelo mesmo barco, o Rio Vermelho, há quarenta anos. No entanto, neste ano o presente saiu do terreiro às 6h e chegou à Colônia de Pescadores por volta das 8 horas, uma vez que o fluxo de público seria bem menor.
O responsável por levar o presente no mar foi o pescador Fernando Lopes, que comprou a embarcação Rio Vermelho há três anos. Para se tornar proprietário e manter a tradição de leva do presente, ele já investiu quase R$ 10 mil em pequenas reformas no barco, como pintura, tábua de fundo e motor. “É preciso manter a herança cultural nas homenagens à orixá”, diz.
Uma escolta da Capitania dos Portos acompanhou o trajeto. Segundo a autoridade marítima, nenhum outro barco foi autorizado a fazer o trajeto justamente para evitar aglomerações dentro das embarcações.
A expectativa é de que o presente “desapareça” no mar: isso significa que Iemanjá gostou da oferenda. A escultura deste ano foi feita pela artesã Sandra Rosa, moradora do Rio Vermelho, e tem como figura-mor o cavalo marinho, que representa “fartura, alegria, amor e prosperidade”, segundo Pai Ducho.
Mesmo com os tapumes postos pela prefeitura, centenas de pessoas se aglomeraram na orla do Rio Vermelho. Pais e mães de santo aproveitaram para prestar suas homenagens em outras praias ou em embarcações no meio do mar, como lanchas e barcos.
Um dos sacerdotes que alugou uma lancha para evitar aglomeração foi o antropólogo e Babalorixá Pai Rodney de Oxóssi. “Participar dessa festa oficial nem sempre é possível, mas o culto a Iemanjá não precisa de um dia especifico. Todos os dias, de certa forma, eu presto culto a ela”, diz.
“Em tempos de contágio crescente é melhor se preservar e evitar aglomerações. É bom dizer que podemos (e devemos) nos conectar com os orixás por meio de orações, vibrações e evocando em nossos pensamentos o Axé das divindades.”
Quem quiser usar alguns materiais para cultuar Iemanjá, “uma sugestão é reservar um cantinho da casa para acender uma vela, colocar algumas flores e um perfume de alfazema”, explica Pai Rodney. No entanto, há algo ainda mais valioso para fazer neste 2 de fevereiro: “Tire uns minutos do seu dia e reze pra Iemanjá. Quando a presença não é possível, o melhor presente são as boas vibrações”.
The post Saiba como foram as homenagens a Iemanjá em Salvador, apesar da festa cancelada appeared first on CNN Brasil V&G.