Nos restaurantes, comidas típicas saem das cozinhas cheias de jovens com criatividade e vontade de mudança. Nas ruas, um povo que nos acolhe com ternura e que relembra o triste passado ao mesmo tempo que mira um futuro esperançoso. Organizada, limpa e bem cuidada, Kigali, a capital e a maior cidade de Ruanda, nos surpreende em cada detalhe, seja perto das colinas verdejantes ou ainda nas ladeiras das ruas dos bairros mais movimentados.
Pequeno país no centro-leste da África, Ruanda foi escolhido como o primeiro destino da terceira temporada do CNN Viagem & Gastronomia, um local que, mesmo menor que todo o estado de Alagoas, carrega uma cultura, natureza e hospitalidade abundantes. E o turismo possui um papel-chave no meio disso: é uma forma de terem uma vida mais digna e uma oportunidade da população de reconstruir Ruanda após uma triste e recente história – o genocídio ocorrido em 1994.
Visitar o país é, ao mesmo tempo, enriquecedor para nós – uma viagem única que mexe com nossos sentidos e visões de mundo – e também benéfico às comunidades locais, já que assim participamos do reerguimento de Ruanda e impulsionamos o surgimento de novas fontes de capital.
Durante minha passagem pelo país africano fiz uma imersão gastronômica por Kigali, visitei o Memorial do Genocídio, espaço em que o recente passado terrível do país é relembrado como um ato de aprendizado para que nunca mais ocorra, e ainda realizei safáris de dia e de noite que transformaram minha visão em relação ao reino animal num dos parques nacionais mais importantes da região.
Este misto de safáris de observação – onde podemos avistar os “Big Five” da África – e a vivência na cidade junto a memoriais e um tempo presente movido pela esperança de tempos melhores, faz com que Ruanda seja um dos locais mais especiais de serem visitados no mundo. Ajuste o fuso horário, aperte os cintos e viaje comigo!
A capital Kigali
Maior cidade e capital de Ruanda, Kigali é limpa, organizada e bem cuidada – impressões que temos logo ao sair do principal aeroporto do país, o Aeroporto Internacional de Kigali, que possui voos que ligam principalmente a África e alguns locais da Europa.
Mesmo coisas aparentemente simples nos dão uma sensação de segurança e acolhimento, a exemplo de todos os motociclistas com capacete – o mototáxi aqui é bem popular -, nenhum sinal de lixo nas ruas, processos burocráticos ágeis e flores nos canteiros. Com mais de um milhão de habitantes, a cidade é marcada por colinas verdejantes e ladeiras, assim como os bairros de Kacyiru e Kiyovu, que são os mais agitados – também na área gastronômica.
Seja de carro ou em alguns pontos a pé, observar a cidade, seus moradores, ir a mercados e sentir a movimentação ao redor é um dos passeios que recomendo logo de cara. Porta de entrada para as maravilhas naturais de todo o país, Kigali não possui um vasto número de atrações turísticas, mas percebemos que há uma agitação cultural em centros de arte e também uma cena gastronômica interessante a ser experimentada.
É pelo entorno da capital que restaurantes, startups e lojas típicas têm florescido nas mãos de jovens empreendedores – trazendo novidades benéficas ao futuro da comunidade. Para entender Ruanda é necessário entender sua história e seu povo, uma vez que história também é cultura e também uma viagem em si.
E é neste contexto que o tenebroso passado recente do país se junta a uma onda de esperança. Kigali é lar do Memorial do Genocídio, local de resgate do genocídio de Ruanda ocorrido em 1994, que passa uma mensagem de alerta às gerações futuras.
Memorial do Genocídio de Kigali
Situado no subúrbio do bairro de Gisozi, a dez minutos do centro de Kigali, o Memorial do Genocídio pressupõe um turismo diferente. Aqui o objetivo é aprender um pouco mais sobre esse capítulo triste e recente na história do país. Bem na frente da entrada do memorial uma placa já nos indica: um lugar de “memória e aprendizado”.
O local começou a ser construído em 1999, mas só foi finalizado em 2004, uma década depois que um milhão de ruandeses, em sua maioria do povo tutsi, foram mortos durante 100 dias. O objetivo era exterminar “os que não tinham direito de estar aqui”, com ajuda de uma campanha massiva de extermínio, preparo de milícias e armamento da população, principalmente entre radicais hutus contra a minoria tutsi.
O memorial conta as etapas da história que levaram ao genocídio, com três ambientações fixas (incluindo um memorial para crianças e outro sobre genocídios ao redor do mundo), que nos mostram desde peças de roupas, documentos e até restos mortais.
Tive a honra de ser guiada por Dione Nagiriwubuntu, sobrevivente que perdeu os pais e avós durante o genocídio. O que ele nos ensinou? Que aqui há uma lição de vida em torno do aprendizado, uma lição de paz, honra das vítimas e o saber do perdão. Conhecer a dor que as pessoas passaram e hoje vê-las convivendo lado a lado com a sombra de um passado terrível e tão recente é duro, mas ao mesmo tempo emocionante.
Num pátio externo há a Chama da Lembrança, uma pira que é acesa todo dia 7 de abril, ocasião em que o presidente de Ruanda acende a chama em memória ao genocídio. Interessante é que o fogo fica aceso exatamente durante 100 dias – o tempo exato de duração do genocídio.
Além de um local sereno e de entrada gratuita em prol da lembrança e dos aprendizados em busca da paz, o Memorial do Genocídio funciona também como um lugar de descanso de mais de 250 mil vítimas do genocídio, onde podemos colocar flores e fazer um minuto de silêncio em respeito aos mortos enterrados com dignidade.
Por aqui vemos e aprendemos algumas frases de impacto relacionadas a todo o massacre ocorrido nos anos 1990. “Se você me conhecesse e realmente se conhecesse, você não teria me matado”, escreveu Felicien Ntagengwa.
A realidade é que estar aqui é como levar um soco no estômago necessário. Impossível não ficar impactada com toda a história e ver de perto o passado sendo contato pelos sobreviventes no presente. Fiquei introspectiva e precisei de um tempo para absorver a dura realidade, ainda mais quando pensamos numa questão fundamental: agora, ao invés de vingança, o povo escolheu o perdão.
Uma expedição gastronômica
Se o passado infeliz é relembrando para que não mais aconteça, o presente em Kigali apresenta sinais de novas oportunidades e perspectivas. E o interessante é notar que essa transformação tem vindo dos mais jovens e também de dentro da cozinha.
É o caso do Nyurah, restaurante imperdível na capital que apresenta pratos com técnicas francesas mas com ingredientes locais, servindo uma nova cozinha moderna africana. Localizado no interior de um prédio com arquitetura contemporânea no bairro de Kiyovu, o mais impactante do Nyurah, além de sua comida excelente, o local funciona como um restaurante-escola: foi criado para ser um espaço onde estudantes e jovens aprendizes trabalham, manifestam seu amor pela comida e exercem a hospitalidade.
Todos os funcionários são estudantes e aprendizes, e podem transformar a teoria em prática – dá para atestar o nível de excelência e observar as trocas entre os jovens na organizada cozinha. O interior do Nyurah é todo descoladinho e moderno, e a decoração toda “made in Ruanda” possui artefatos de inspiração africana espalhados pelo salão.
Para se ter uma boa noção dos sabores dos ingredientes locais utilizados, a dica é pedir um pouco de cada prato. A salada de vegetais frescos é uma boa pedida, com alcachofras orgânicas, cama de purê de ervilha verde e uma porção de ricota caseira, assim como a tilápia grelhada com pétalas de tomate seco e molho de creme de salsa, acompanhada de banana-da-terra e legumes de prato principal. É uma viagem pelos sabores locais!
Outro endereço em Kigali que tem movimentado a cena gastronômica e de empreendedorismo em Ruanda é o Kivu Noir Coffee, empreitada que tem Kevin Mbundu como co-fundador, jovem de 27 anos que faz parte da geração de ruandeses envolvidos com algum tipo de negócio que auxilia a comunidade do entorno. Cheio de gente jovem num espaço moderno e de clima agradável, a loja serve e vende os cafés da marca de Kevin, que utiliza os grãos frescos do café arábica ruandês das margens vulcânicas do Lago Kivu.
Em uma das mesas, tive a oportunidade de conversar com jovens que têm feito a diferença nos tempos atuais de Ruanda. Eles me contaram que o empreendedorismo é feito com base em atenuar os desgastes causados pelo genocídio no país em 1994, já que suas famílias – e eles próprios – sofreram com as consequências deste triste capítulo.
Pela conversa, percebi que estes jovens tentam construir algo novo que não existe por aqui ainda, sempre em consonância com um movimento de criatividade. “É um bom momento para criar novos pequenos negócios, startups, exponenciais em inovação digital”, me conta o jovem empresário Ghislain Dukuze.
Logo abaixo do café há uma loja de roupas com cortes contemporâneos mas que carregam em si a essência de Ruanda. Comprar os vestidos e usá-los segundo a aprovação dos locais é uma forma de ajudar o comércio local e motivo de orgulho para o povo, uma vez que nós, turistas, levamos desta maneira a cultura de Ruanda para o mundo.
Já o Repub Lounge é ideal para experimentar vários pratos típicos de Ruanda e da África. Situado numa parte mais central da capital, no bairro de Kimihurura, o restaurante é despojado, com uma decoração de paredes vermelhas e mais rústica, ideal para um jantar agradável. Pratos típicos com banana doce, arroz com gengibre, peixes e carnes são servidos em porções generosas. Um terraço com mesas e vista para a capital está entre os pontos mais gostosos da casa.
Em linhas gerais, Ruanda carrega natureza, vida animal e uma cultura social e gastronômica como nenhum outro lugar. O turismo aqui é uma forma do povo ter uma vida mais digna, de sair de uma história triste e ter a oportunidade de escrever uma nova – e mais esperançosa – trajetória para Ruanda, cheia de caminhos promissores. Uma vez aqui, ajudamos a impulsionar esse projeto.
The post Uma volta por Kigali, capital de Ruanda: passado e futuro na cidade africana appeared first on CNN Brasil V&G.