No Turcomenistão, os resultados positivos de Covid-19 são jogados no lixo


Desde o início da pandemia, todos os países reportam seus casos de Covid-19 à Organização Mundial da Saúde (OMS), que reúne os dados diariamente em um mapa interativo. Quanto mais escuro estiver o país, mais casos ele tem. Mas duas manchas amarelas chamam a atenção no mapa: Turcomenistão e Coreia do Norte. Nenhum dos dois reportou qualquer caso à organização internacional.

Com exceção de algumas ilhas do Pacífico (que estão com as fronteiras fechadas desde abril de 2020), esses são os únicos países que dizem não ter registrado nenhum caso de Covid-19 desde o início da pandemia.

Não é coincidência que eles também possuam os regimes totalitários mais fechados do mundo. No ranking mundial que mede a liberdade de imprensa, realizado anualmente pela ONG Repórteres Sem Fronteiras, por exemplo, Coreia do Norte e Turcomenistão aparecem em penúltimo e antepenúltimo lugar, respectivamente. Só perdem para Eritreia, uma ditadura no nordeste africano.

É por isso que o jornalista Ruslan Myatiev, editor do portal Turkmen News, administra o site diretamente da Holanda. Os repórteres recebem e confirmam as informações com fontes conhecidas – mas não revelam os dados pessoais dos indivíduos, que correm o risco de serem presos em território turcomeno. As mensagens são trocadas por aplicativos de mensagem como o Telegram e WhatsApp, que são proibidos no Turcomenistão. Para acessá-los, as fontes devem baixar um VPN, que basicamente “finge” que o computador está em outro país.

Ao longo do último ano, o portal trabalhou intensamente na cobertura da Covid-19 no país. Notícias sobre a pandemia no Turcomenistão são raras na mídia internacional, justamente porque é difícil acessar pessoas que estão dentro do país. Myatiev e sua equipe coletaram dezenas de relatos de pessoas que tiveram a doença no país, mas nunca apareceram nos números oficiais.

As ondas

Gurbanguly Berdimuhammedow, que ocupa a presidência do Turcomenistão desde 2006, impôs medidas sanitárias logo no início da pandemia: fechou as fronteiras terrestres com outros países e limitou a entrada de estrangeiros por avião. Desde o início, o país se orgulha ao dizer que está livre do vírus.

Mas entre o final de maio e início de junho de 2020, a situação piorou. Myatiev começou a receber mensagens de fontes reportando quadros sintomáticos de Covid-19. O governo diz que a culpa é da poeira no ar – e é por esse motivo, segundo Berdimuhammedow, que o uso de máscaras é obrigatório no país.

A questão se agravou ainda mais ao longo dos meses. No dia 8 de julho, o conselheiro do presidente em assuntos de óleo e gás, Yagshygeldi Kakayev, morreu de pneumonia aos 61 anos. O diplomata turco Kemal Uckun morreu de pneumonia no mesmo dia, em um hospital da capital turcomena, Asgabate.

Mesmo sem notificações oficiais, Myatiev identificou pelo menos quatro ondas de Covid-19 no país – ou seja, momentos em que os relatos se intensificaram e os hospitais ficaram saturados. “Julho e agosto de 2020 foram os momentos mais difíceis. Agosto e setembro de 2021 também. Muitos médicos e enfermeiros morreram.”

Continua após a publicidade

Resultados jogados fora

Segundo o jornalista, os turcomenos geralmente sabem quando estão com Covid-19. É possível fazer o teste RT-PCR nos hospitais, considerado o padrão-ouro para o diagnóstico da doença. Se o resultado for positivo, o paciente é informado e os médicos passam as recomendações necessárias de acordo com o caso. E só. Diferente do Brasil, o paciente não recebe nenhum papel atestando o resultado. 

“É tudo não oficial. Geralmente o paciente recebe uma ligação do médico, que diz ‘O seu teste RT-PCR deu positivo. Passe aqui para pegar a prescrição médica’”, diz Myatiev. Os médicos e enfermeiros sabem dos casos e fazem o possível para tratar os pacientes – isso só não é informado ao governo.

“Se você olhar a prescrição médica dada para esses pacientes no Turcomenistão, são os mesmos medicamentos que têm sido usados para tratar Covid-19 em outros países da região, como a Rússia”, diz ele. “A diferença é que no Turcomenistão é tudo, menos Covid-19. Geralmente, enquadram como pneumonia.”

O jornalista também teve acesso aos exames de raio-X dos pacientes mais graves, que já estão com o pulmão comprometido. Ele enviou os exames para médicos de outros países, que disseram se tratar de casos característicos da doença. “Qualquer médico que olhasse para a imagem diria imediatamente que é Covid-19.”

Homenagem às vítimas

Já que não há casos oficiais no Turcomenistão, a Covid-19 não pode constar no atestado de óbito, mesmo que esteja claro que a vítima morreu da doença. “No certificado de morte vêm de tudo: pneumonia, trombose, ataque cardíaco, derrame… mas não Covid”, diz Myatiev.

Assim como no Brasil, os turcomanos costumam fazer funerais e permitir que familiares e amigos se despeçam da vítima antes do enterro. Nos últimos meses, no entanto, os mortos têm sido enterrados no mesmo dia, logo após saírem do necrotério. O mesmo é feito por aqui com as vítimas de Covid-19, para evitar a contaminação no funeral.

É difícil estimar quantos turcomanos morreram da doença. A RadioFreeEurope reportou que 25 mil vítimas constam em uma “lista secreta” mantida por oficiais do governo. A informação foi dada por uma fonte anônima do sistema de saúde do país. Mas não há como ter certeza – segundo a fonte, o número pode ser até maior.

O portal Turkmen News já confirmou mais de 70 mortes por Covid-19, por meio da checagem feita com médicos e familiares. O portal fez ainda um memorial online para as vítimas da doença. “Muitos familiares entram em contato conosco e dizem ‘Eu acabei de enterrar meu pai, e eu gostaria que você publicasse essa informação. Deixe o mundo inteiro saber o que está acontecendo no Turcomenistão.’”

Atualmente, o país está administrando vacinas contra a Covid-19. Elas são obrigatórias para quem quer fazer viagens domésticas, inclusive. Mesmo assim, o Turcomenistão ainda não admite ter casos da doença.

Continua após a publicidade